Das muitas grandes oportunidades que a aviação me deu, voar para lugares que eu nunca antes imaginara conhecer foi uma das mais cativantes. Apenas três anos atrás fiz meu primeiro voo internacional como piloto: embora minha formação tenha se dado nos Estados Unidos, atravessar fronteiras voando é algo totalmente diferente. Desde aquele agora distante bate-volta para Córdoba, Argentina, muita coisa mudou. E se no Boeing 737, visitar o país vizinho virara rotina, incluindo inúmeras aproximações para minha querida Ezeiza, foi no Dreamliner que o mundo realmente encolheu.
Muitos conceitos que antes eram vagos e distantes, como ETOPS, ou cold weather operations, tornaram-se comuns e até frequentes, e essa assiduidade, com o tempo, os fez tão naturais quanto era voar a ponte aérea meros meses antes. RODEX e SNOWTAM passaram a fazer parte dos invernos assim como QNH abaixo de mil Hectopascais e temperaturas acima de quarenta graus passaram a fazer parte do verão. E após cruzar tantas vezes a Europa e o Índico, e memorizar a frequência do Air Defense iraniano e as restrições na subida e descida na FIR Bahrein, surgiu um novidade intrigante entre os destinos do heavy plastic: não resisti, pedi e fui atendido na escala de junho, iria fazer meu primeiro voo para a Moscou.
Para os mais jovens pode não soar como algo tão incrível, mas até meros 30 anos atrás, visitar a capital da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas era algo bastante raro para um ocidental, e mesmo após as massas invadirem a Rússia na última Copa do Mundo de futebol, imaginar que eu iria poder andar pela Praça Vermelha, vendo a catedral e o Kremlin lado a lado, parecia algo surreal. Mas antes do passeio, vem a operação: que tipo de diferenças existem em se voar para um país que cresceu e cuja tecnologia se desenvolveu tão independente e até oposta à ocidental em muitos aspectos?
Voar sobre a imensidão russa não era exatamente a novidade: a caminho da Escandinávia é bem comum usarmos rotas que passam próximas à capital, e desde o primeiro voo me surpreendi ao saber que, diferentemente da China, na Rússia voamos em Flight Levels, em dezenas e em pés, exatamente como no resto do mundo. E tendo destinos russos como alternados nessas rotas, outra diferença comum era o vento, medido em metros por segundo – cada MPS equivale a 1.94kt, então, arredondando para cima, é uma conversão até corriqueira. Mas é abaixo do nível de transição que a coisa fica confusa: na Rússia se usam clearances em metros e altura – ou seja, baseados em QFE, e não QNH como estamos acostumados. Ainda que resguardados por uma providencial tabela nas cartas Jeppesen e com um briefing cuidadoso, dá um nó na cabeça quando o controle lhe autoriza para “800 metros” e você precisa descer para 3160 pés – ou seja, 2629 acima do campo, no caso do principal aeroporto de Moscou.
Esse não é o único detalhe da chegada em Domodedovo, que inclui entre outras coisas, uma série de limitações de velocidade na descida (a saber, Mach .8 ou 280kt acima do FL250, 270kt acima do FL100, 250kt abaixo, 220kt até 12nm da pista, trem em baixo a ser reportado para torre e a apenas 5 milhas da pista, mantendo 160kt até 4.3nm, o que exige atenção extra por levar a aeronave bem próximo dos critérios de aproximação estabilizada) e a constante conversa em russo entre o ATC e as aeronaves locais – o que diminui a consciência situacional de quem não domina o idioma.
Mas não dá pra dizer que eles não fizeram a sua parte: as muitas chegadas e saídas, apesar dos nomes russos (como AKSINYINO 4B ou GLOTAYEVO 32W), são, diferentemente de muitos lugares, chamadas pelos seus designativos apenas – AO 4B e DK 32W – mesma maneira que aparecem inclusive no FMC – flight management computer. E após o pouso, apesar de o airport briefing sugerir algo mais complicado, da junção da taxiway paralela à pista com as que levam ao terminal, um veículo “follow me” aparece para conduzir-nos até o gate.
O voo até Moscou saindo do Oriente Médio é um deleite para os olhos: com tempo bom, acompanhamos as belezas do relevo incrível do Irã, sobrevoando Shiraz e deixando Tehran e suas montanhas nevadas à direita numa tarde ensolarada. Após vencer o terreno, chegamos ao Mar Cáspio, um lago de água salgada maior que a região Sul do Brasil, e que banha na sua margem leste o Turcomenistão e o Casaquistão, ao sul o Irã, a oeste o Azerbaijão – onde fica nosso principal alternado em rota nesse trecho, Baku – e ao Noroeste a própria Rússia. Entramos pelas planícies próximas à terra do caviar, Astracã, e rumamos 43 mil pés acima da quase deserta mas vasta e fértil região ao longo do rio Volga. Após driblar uma imensa célula de tempestade, descemos e pousamos na pista 32L: cerca de dois mil pés acima do terreno saímos da camada conforme a luz do dia se esvaía – no verão, o sol se põe quase às 21h – e a luz verde do Head Up Display se destacava frente à iluminação da pista.
Quase metade do voo de mais de 4 horas se dera sobre território russo, e a capital não era desproporcionalmente menor. O enorme sistema de metrô, antigo mas barato e eficiente, faz com que valha a pena se deslocar pelo subsolo: o trânsito de Moscou, uma cidade que se divide entre a modernidade do capitalismo e os prédios visivelmente desgastados do tempo do socialismo, é pesado mesmo num final de semana. Após uma rápida visita à histórica Praça Vermelha, uma caminhada pela agitada rua Nikolskaya com seus bares e restaurantes, e pegamos o metrô para o norte. Infelizmente, apesar da imensidão da capital russa que merece vários dias de férias para ser conhecida a contento, nosso tempo a trabalho era curto. A última e interessante visita antes do descanso para o voo da noite: Museu de Cosmonáutica. Não tem o apelo americano que transforma tudo em parque temático, mas possui um acervo diferente e interessante, que inclui referências às missões Apollo e até ao nosso astronauta, Marcos Pontes, que foi para espaço e voltou na nave russa Soyuz. O memorial ao redor do museu é especialmente bonito: traz várias figuras importantes da história da exploração espacial pelos russos, em especial, um cosmonauta famoso e que dá nome inclusive a uma das Standard Instrument Departures (SID) do aeroporto internacional de Moscou: Yuri Gagarin, o primeiro ser humano a ir ao espaço. A volta, à noite, foi sob uma bela Lua cheia que os russos perderam na corrida espacial, mas visitaram muitas vezes com drones e sondas, e chegamos ao amanhecer do Golfo numa manhã fresca de primavera: 32 graus. Um voo digno de ser pedido de novo no mês seguinte.