Hoje nosso destino final é a milenar capital espanhola, uma das mais vibrantes cidades europeias. Com rica cultura, gastronomia inigualável e um sotaque irresistível, é com certeza um lugar que vale muito à pena ir nas férias. Mas… e operando? Os desafios do imenso aeroporto de Barajas e o espaço aéreo que o circunda são muitos e peculiares.
Então, seja bem vindo a mais esse desafio instigante. A saída do Golfo não tem muitas novidades, e talvez a única diferença relevante que temos comparada aos outros destinos europeus que já cobrimos nessa série é que, ao invés do Irã, hoje sobrevoaremos o Iraque. Embora o passado não muito distante do país seja conturbado, as coisas estão relativamente calmas por lá há algum bom tempo e há quase dois anos seu espaço aéreo passou de proibido a restrito
Isso significa que há certas considerações para seu sobrevoo por parte de todas as companhias que utilizam as poucas aerovias disponíveis. Por exemplo, só níveis de voo superiores são autorizados, e apenas proas diretas específicas podem ser aceitas, pois ainda há uma pequena parte do espaço aéreo, próximo à Mosul, que permanece fechado.
Fora isso, há até bons alternados em rota, como a grandiosa Bagdad e a cidade kurda de Erbil, além da vantagem de que, diferente da FIR Tehran, o terreno iraquiano é baixo e relativamente plano. Também, especialmente em dias de desvios em rota por causa das grandes formações comuns nessa parte do mundo principalmente no inverno, é preciso ficar atento à proximidade com a fronteira iraniana. Mesmo após décadas desde o fim da guerra entre os dois países, atravessar esse limite no céu ainda não é algo trivial e exige coordenação entre os dois países.
Aos poucos o pesado tráfego civil e militar comum ao Oriente Médio vai ficando para trás, e com duas horas de voo entramos na imensa Turquia. A travessia dessa região vasta e acidentada é, por conta dos fortes ventos contrários, como de praxe, demorada; mas tendo decolado às três da tarde e voando agora na direção do poente, a vista pelas generosas janelas do Dreamliner é um deleite para os olhos. Primeiro nas várias verdes montanhas e vales turcos do alto verão, depois na beleza misteriosa do Mar Negro, cuja margem norte, onde fica a Crimeia, não se consegue ver por conta da névoa, ainda que estejamos a apenas 100 quilômetros de lá. O Sol brilha forte à nossa frente, e nesse sentido a generosidade das janelas do Boeing 787 não ajuda, porém o reflexo no mar abaixo logo desenha a costa a oeste do Estreito de Bósforo, e o contato com o centro Sofia três horas e meia de voo após nossa decolagem, na exata metade do caminho, anuncia nossa chegada ao espaço aéreo do Velho Continente.
Dezenas de aeronaves dividem o céu conosco. Desde voos curtos na região quanto dos grandes aviões, a caminho do Oriente Médio e da Ásia, e a frequência frenética e as belas passagens dos outros tráfegos pelo nosso dão ideia da velocidade que estamos mantendo. Imaginar todos os impérios que se desenvolveram na velocidade do cavalo e da marcha dos exércitos e do comércio, nessa rica parte do mundo onde três das maiores massas de terra do planeta se encontram é simplesmente fascinante. Onde eles tinham tanta dificuldade e desafios, nós sobrevoamos elegantemente a quase mil quilômetros por hora.
E embora nosso destino tenha apenas uma hora de diferença de fuso para a nossa base, voar nessa velocidade para Oeste não passa incólume, e nosso corpo logo estranha o fato de já serem oito da noite e o Sol ainda estar alto no horizonte. Na verdade, ele pouco se moverá nas duas horas restantes, na medida em que, nesta latitude, praticamente anulamos, com nossa velocidade, o efeito da rotação da Terra.
Após deixarmos a Bulgária, sobrevoaremos uma parte da Europa em que as rotas são livres, ou seja, não há aerovias. Será assim nas FIR Belgrade, Sarajevo e Zagreb, enquanto deixamos a beleza tantas vezes violentamente disputada da Sérvia e da Bósnia e Herzegovina abaixo, sobrevoamos a turística Croácia e já sobre o Mar Adriático, deixamos as ilhas brancas de mar turquesa e entramos no espaço aéreo italiano, onde por questões de acomodação do tráfego predominante, acontece como na Flórida: aviões indo do Norte para o Sul seguem altitude ímpares e do Sul para o Norte, altitudes pares. Como estamos numa proa que levemente tende a sudoeste e vinte e cinco toneladas mais leves do que quando deixamos o solo do deserto, subimos para o FL390. Infelizmente a nebulosidade não permite que vejamos Veneza ou Milão dessa vez. Logo após bloquear o VOR Golf Echo November, em Gênova, uma das potências comerciais da Renascença, trocaremos o “buonacera” pelo “bonjour”, passando ao controle de Marseille ao sobrevoarmos a bela região onde os Alpes encontram o Mar Mediterrâneo.
Mal entramos na FIR, já mantendo 41 mil pés, pedimos e ganhamos proa direta para GANGU, 60 milhas à frente: “Merci!”. O mesmo acontece com BISBA, e agora estamos entrando na Cataluña. Enquanto sobrevoamos Barcelona, concluímos o approach briefing. Setados os mínimos do ILS W para pista 32, conferidas as restrições da carta da STAR, ADUXO1D. Como o Boeing 787 não possui ADF, embora o ATIS esteja dando o ILS Z, pediremos o W uma vez que o procedimento de arremetida prevê o balizamento pelo NDB da base aérea de Getafe. Além do terreno alto ao norte e da complicadíssima carta de táxi, a aproximação para o aeroporto internacional Adolfo Suarez tem mais uma característica que requer atenção extra: as altas velocidades requeridas até bem próximo da pista. Isso adiciona uma dificuldade, pois com as velocidades mais altas, operamos mais perto dos limites dos flaps e da própria janela de estabilização da companhia, mas nada que não seja contornável com agilidade e precisão na hora de configurar o avião para o pouso.
Uma vez em solo, a questão volta-se pros complicados clearances de táxi, característicos aos aeroportos espanhóis em geral, mas que em Barajas alcançam seu ápice. Toda a atenção é fundamental até estarmos parados no portão com motores desligados.
Agora resta desacelerar do voo, comer um polvo maravilhoso, umas gambas al alijo, ir ao Mesón del Champignon, ou provar do melhor presunto do planeta, o famoso jamón ibérico.
Afinal, as vinte e quatro horas na capital espanhola podem não ser muito tempo para passear, mas para uma boa refeição e um descanso merecido, são mais que suficientes.