Quando se fala em viajar para a Ásia, em especial para o sudeste asiático, nenhum destino é tão citado quanto a Tailândia. O país, que descobriu no turismo uma de suas principais fontes de renda e empregos, tem várias companhias nacionais, em especial uma enorme e conhecida no mundo todo, enquanto muitas outras linhas estrangeiras fazem questão de voar para essa nação que, apesar de ser muito menor que o Brasil, gera várias vezes mais receita com turismo externo. Das montanhas de Chiang Mai à metrópole de Bangkok, as coisas são baratas, o povo extremamente simpático e as opções de lazer são fartas. Mas é para as praias que a maioria dos turistas prefere ir, e dentre elas, nenhum lugar recebe tantos voos quanto Phuket.
À beira do Mar de Andaman, Phuket em si nem tem praias tão incríveis, mas pela proximidade com as surreais Phi-Phi Islands – que inspiraram a paisagem do planeta fictício do filme “Avatar” – e boa infraestrutura, acaba sendo o principal aeroporto da região, e com um adendo: Mai Khao Beach uma espécie de Maho Beach do oriente, um excelente ponto de spotting!
Mas como é operar na Tailândia? Qual o maior desafio – além claro, do sotaque dos controladores, cantado, com “l” no lugar do “r” e sempre cordial? Bom, o maior desafio na verdade é chegar lá. A Tailândia é bem longe, e estando dez horas à frente do Brasil no fuso, sua primeira batalha será com o jet lag. Nosso voo específico decolará do Oriente Médio às 8 da manhã e chegará à Phuket (HKT/VTSP) à noite – embora o voo em si dure menos de 7 horas. A mágica acontece porque voamos contra o movimento de rotação da Terra a mais de 900 quilômetros por hora, então acabamos por perder quatro horas do dia na viagem – que serão naturalmente recuperadas na volta. Deixando o Golfo Pérsico para traz meia hora após a decolagem, entramos na primeira das duas travessias oceânicas que faremos. Cada uma terá cerca de 1000 milhas náuticas, aproximadamente a mesma distância de Fernando de Noronha às Ilhas Cabo Verde, usadas na travessia transatlântica do Brasil para a Europa. Muscat irá nos controlar até a posição RASKI, onde a responsabilidade passará para Mumbai. O rádio VHF tem um alcance de pouco mais de 200 milhas, então, de RASKI até KARKU, passaremos 320 milhas (cerca de 40 minutos) apenas monitorando 133.3MHz, sem sermos ouvidos mesmo que quiséssemos. A comunicação efetiva com Mumbai, nesse trecho, depende das ruidosas frequências HF, que além de congestionadas, são de péssima qualidade.
Mas estamos em 2019, e dez minutos antes de entrar na FIR Mumbai, fazemos logon com esse centro pelo CPDLC. Via datalink, que usa tanto as antenas VHF e HF quanto sinal via satélite, trocamos mensagens de texto com o controle de tráfego aéreo. A interface é simples, com várias mensagens pré-programadas e facilmente passamos os estimados dos fixos de reporte mandatório e recebemos instruções simples do controle, como pedidos de outros estimados ou frequências a contatar via voz. O CPDLC merece um artigo inteiro, e quando falarmos de um destino na Europa, ficará ainda mais evidente a quantidade impressionante de recursos que essa comunicação do futuro tem – e você descobrirá afinal pra que servem aqueles botõezinhos “XFR” no MCP do 787, além dos três “ACPT”, “CANC” e “RJCT” de cada lado.
Após contatamos Mumbai em VHF, atravessamos o subcontinente indiano, deixando Mumbai e Hyderabad, nossos principais alternados em rota, à direita, e enfim entramos na segunda travessia oceânica do dia, ao sobrevoarmos Vishakhapatnam. Serão duas horas e meia de voo sobre o imenso Golfo de Bengala, e nesse trecho, a meteorologia não está disposta a facilitar a nossa vida. Em plena estação das monções, entramos IMC – Instrument Meteorological Conditions – ainda sobre a Índia, e agora estamos totalmente dependentes do nosso radar meteorológico. Mesmo os elevados níveis frequentados pelo Dreamliner não serão suficientes para sobrevoar as nuvens de tempestade, que nesta época e região chegam facilmente aos 50 mil pés. Nos primeiros quinze minutos sobre o mar já se revela no nosso navigation display uma célula do tamanho do estado do Rio de Janeiro, e boa parte do combustível extra que havíamos solicitado durante o abastecimento prevendo justamente esses desvios é usado na próxima hora de voo. O desvio ao sul, refinado a cada nova leitura do radar, nos leva à FIR Chennai antes de podermos retornar à FIR Kolkata, na qual voaremos até contatar Yangon, já pouco ao norte das Ilhas Andaman. Finalmente, após exaustivas duas horas envoltos em uma atmosfera totalmente branca, o tempo clareia ao nos aproximarmos da FIR Bangkok, e o Sol já está baixo no horizonte Oeste. Sob um belo e dourado poente, iniciamos a descida para Phuket.
Como número um na aproximação, mantemos 300 nós e somos autorizados direto à posição CIDER, e de lá a interceptar o localizador para a pista 27. Abaixo de 10 mil pés reduzimos para 250 nós segundo nossos procedimentos padrão, e nessa proa, sobrevoamos as belas ilhas estilo “Pandora” a leste do nosso destino, numa longa perna base. Com o Sol poente encoberto pelas nuvens no horizonte, avistamos a pista iluminada. Por ser levemente offset, o ILS da 27 nós deixa um pouco à esquerda da pista – excelente desculpa para configurar a aeronave para o pouso e desconectar o piloto automático, alinhando manualmente o avião sem os flight directors. A cabeceira 27, impressionantes vinte metros mais alta que a cabeceira oposta, convida a um flare suave, e mesmo com autobrake 2 e idle reverse, livramos na intercessão Echo. O pátio do pequeno aeroporto está cheio de 737 e A320, mas há uma boa quantidade de heavies também, incluindo um Boeing 767, um Airbus A330, além de um Boeing 777 e outro 787 também vindos do Golfo Pérsico – e essa é a baixa temporada, quando chove mais e esse balneário frequentado por europeus, chineses e russos está relativamente calmo.
É noite quando chegamos ao hotel, e um providencial fried rice no jantar cai quase como um almoço tarde devido ao jet lag. Mas entre pratos das mais variadas cores e sabores, a Tailândia convida a experimentar. No dia seguinte à noite, partimos de volta ao deserto. Será um voo totalmente noturno, decolaremos às 9 da noite e antes da meia noite estaremos em casa, após uma rota significativamente mais ao sul para aproveitar os ventos de cauda – o voo será 11 milhas mais longo e ainda assim, 30 minutos mais curto. Diferente da ida mais ao norte, na volta teremos um setor ETOPS – em que estaremos a mais de uma hora do alternado mais próximo – ou 429 milhas náuticas. Usando Colombo e Phuket como alternados, funciona da seguinte maneira: um check específico de manutenção – que inclui mecânicos diferentes olhando sistemas redundantes para garantir que um eventual erro não seja cometido por ambos – um requerimento meteorológico para despacho bem superior aos mínimos dos alternados – para mitigar o risco de que a meteorologia nesses lugares se degrade ao ponto de não podermos mais contar com eles – e um acompanhamento criterioso da tripulação do tempo e consumo de combustível na entrada e saída dos setores ETOPS – no caso, um trecho de meia hora no Oceano Índico. Nossa aeronave está certificado para ETOPS de até 180 minutos, ou seja, podemos voar a até três horas de distância do alternado mais próximo, o que cobre a maioria das rotas possíveis no mundo.
Mais à frente, faltando 400 milhas para sairmos da jurisdição de Mumbai, o controle nos pede para passarmos TOTOX, limite da FIR, “at 18h33z or later due to traffic separation”. Mantendo o Mach econômico de 0.84, abro a página RTA do FMC: segundo nosso computador de bordo, podemos passar aquela posição entre 18:30 e 18:35, sendo que nosso estimado atual é 18:31z. Digito 18:33A e executo, a aeronave reduz os motores automaticamente e a velocidade cai para 81% da velocidade do som.
Uma vez controlados por Muscat, voltamos a acelerar, e já no Golfo Pérsico, numa noite especialmente limpa, vemos ao mesmo tempo as luzes de Dubai, Abu Dhabi e Doha ao nosso redor. Somos encurtados seguindo um triplo sete vindo da Austrália apenas 5 milhas adiante. Com um leve vento de través, 35 graus Celsius e QNH de 997 hPa, chegamos na hora do rush de volta à base. As 155 toneladas do heavy plastic tocam o solo suavemente 20 minutos antes do horário previsto. Exatamente como tem que ser. Com uma longa folga pela frente, fica a questão: qual o próximo destino?