Na última semana das minhas férias, fiz meu programa predileto para qualquer férias: fui aos Estados Unidos voar. Como de praxe, a agenda incluía visitar alguns amigos que estão fazendo seu treinamento na Treasure Coast Flight Training, escola em Stuart, a meio caminho entre Orlando e Miami, e de quebra fazer meu Flight Review. Como meu último check na FAA, o Commercial Multi-Engine Land tinha ocorrido há mais de dois anos, tornava-se necessário o Flight Review para que eu pudesse, novamente, atuar como piloto em comando numa aeronave de matrícula americana. Mas faltou combinar com os russos, ou melhor, com o Colin.
Cheguei em Miami no fim do dia de sábado, domingo ninguém voou pois o presidente Obama estava visitando a região, o que restringia muito o espaço aéreo de Stuart – que serviu de base inclusive para um de seus helicópteros, que embarcou num dos dois enormes C-17 que pousaram tranquilamente na pista principal do nosso aeroporto assim que o presidente voltou para Washington D.C. – e segunda-feira, quando finalmente poderíamos voar… a tempestade Colin ganhou força, trazendo vento e chuva para a costa sudeste da Florida. Os dias passaram vagarosos na companhia de Bruno, Danny, Ricardo e Vinícius – com quem gravei inclusive um vídeo para a série AeroNews na Florida, do Portal Piloto Comercial – mas só na quarta-feira a coisa começou a melhorar. Como o regulamento preconiza, fiz uma hora de ground e uma hora de voo com o instrutor Ricardo – que embora seja português, durante quase o tempo todo do ground e do voo conversou comigo em inglês. Revisamos regulamentos e manobras, e no fim da manhã de quinta-feira, estava liberado. O tempo à tarde voltou a ficar chuvoso e com prognósticos nada animadores para o dia seguinte, mas a sexta-feira amanheceu com sol em Stuart. Eu e Bruno resolvemos que era nossa chance de voarmos: como o Nick, um amigo meu que voa numa linha aérea regional, morava em Tampa e estava de folga, resolvemos almoçar com ele no belo aeroporto de Albert Whitted, na cidade vizinha de Saint Petersburg, a cerca de 300 quilômetros de Stuart – quase a mesma distância do Rio a São Paulo: longe de carro, mas divertido de avião.
Corremos para o aeroporto, e chegamos junto com uma camada espessa de nuvens a apenas 500 pés. O aeroporto estava fechado para partidas visuais. Ainda levamos mais uma hora avaliando os vários recursos de weather que o site da NOAA (http://aviationweather.gov/adds) nos dá. Num exercício de paciência e ansiedade, achamos uma brecha, passamos o plano de voo e decolamos. A ida foi bastante tranquila, e passamos praticamente o tempo todo fora da camada. O ar estava bastante calmo, e só na chegada a St Pete que a coisa desandou um pouco: embora toda a Baía de Tampa estivesse com tetos altos e até partes de sol, exatamente em cima do nosso aeroporto de destino uma célula resolvera desaguar junto da nossa chegada.
Tão logo fomos liberados pela torre para entrar na perna do vento esquerda da pista 18, pingos grossos começaram a estalar na fuselagem e o aeroporto sumiu. Restou-nos voltar ao controle de aproximações de Tampa, que nos vetorou sobre a cidade num belo voo panorâmico enquanto aquela nuvem específica ia embora. Alguns minutos depois, fomos liberados para tentar nossa aproximação. Eu, que estava na minha terceira hora de Cessna 172 em anos, acabei fazendo uma base muito alta para escapar da chuva – que ainda estava a cerca de uma milha da cabeceira que usávamos – e tive de arremeter. Fiz o circuito de novo pela direita, e com mais flap e menos motor, coloquei o valente Skyhawk de 1979 na rampa outra vez. Não foi o melhor pouso da semana – flat e com muita velocidade – mas deu certo: meia hora depois estávamos comendo um delicioso hambúguer e aprendendo coisas sobre a aviação de linha aérea americana capazes de deixar qualquer piloto brasileiro boquiaberto. Enquanto a conversa regada a sweet tea rolava solta, Saint Peter armava uma emboscada.
Com ventos indecisos sobre toda a Florida graças a outra depressão que se formava no Caribe, cumulus nimbus de mais de dez quilômetros de altura começaram a se formar numa faixa que ia de Tampa a Melbourne, mas que não parecia querer ir a lugar nenhum. Nick sugeriu que tentássemos passar a parede pelo norte e depois, na direção de Orlando, voltássemos para o sudeste a caminho de Stuart: um desvio de mais de duas horas no pequeno Cessna. Por via das dúvidas, completamos o tanque, e com 50 galões e sangue frio seguimos para o avião. A perna da volta seria feita pelo Bruno. Como na vinda, não nos restava outra opção senão um plano IFR. Tetos baixos e chuva no destino inclusive nos obrigavam a escolher um alternado. A cada dois ou três minutos conferíamos a imagem do radar, enquanto uma muralha se erguia no horizonte.
– Nem de Boeing dá pra passar, teríamos que desviar de qualquer jeito. – comentei. Nossa visão da meteorologia aeronáutica fica erroneamente calibrada quando nos acostumamos à linha aérea, onde poucas condições climáticas realmente impedem uma decolagem. Mas numa aeronave leve a pistão, sem radar meteorológico ou sistemas de degelo, o parâmetro é totalmente diferente. Não tínhamos exatamente pressa, mas seria muito bom que devolvêssemos a aeronave da escola ainda naquela tarde. Bruno percebeu que algumas células que haviam atingido o sudoeste da Florida, perto de Naples, estavam agora se desfazendo. Era o conhecido ciclo de uma CB, que após desaguar, se desfaz. Num dia todo de idas e vindas, ficamos pensando nos cenários possíveis. Ao norte, aquele cinturão de nuvens de chuva cuja única passagem considerávamos usar, poderia se fechar a qualquer momento e nos engolir, ponderei. Bruno passou o plano de voo: de Whitted, indo praticamente para o sul, sobrevoaríamos o VOR de La Belle, a oeste do grande lago Okechobee, atravessando um Convective SIGMET inteiro, e de lá iríamos para Stuart – onde chovia copiosamente naquele momento.
Acionamos e pedi autorização, o solo de KSPG respondeu: “Niner Papa Golf, you’re cleared to Sierra Uniform Alpha via radar vectors to La Belle, then direct. On departure will be right turn heading two seven zero, climb and maintain one thousand six hundred, expect seven thousand one zero minutes after departure. Departure frequency will be one one eight point eight, and the squawk is four five three four.” Como na perna da vinda eu voara e Bruno fizera a fonia, agora era a minha vez de cotejar. Taxiando para a curta pista uno oito de Albert Whitted, com pouco mais de 800 metros, Bruno me perguntou o que eu achava – nenhum de nós estava muito seguro de enfrentar aqueles céus de fim de primavera num Cessna 172. Pensei por alguns segundos e respondi, considerando o quão provável era que chegássemos a Stuart e pousássemos, com todos os dados que tínhamos: “Fifty/fifty”. Ele riu, e eu também. Que pilotos seriam idiotas o bastante para decolar com chances tão baixas? Mas aí estava a mágica, e a grande diferença entre voar nos Estados Unidos e em outras partes do mundo. Tínhamos um excelente avião, totalmente equipado para IFR com um belo six pack analógico e um providencial Garmin 430, com combustível para mais de 5 horas de voo. Tínhamos todos os dados mais atualizados e precisos dos ecos de radar de toda a Florida na palma da mão com nossos celulares. Tínhamos um dos melhores controles de tráfego aéreo do planeta. Porém mais reconfortante que isso tudo ou que a nossa experiência – que somada já dava praticamente um PLA – estaríamos sobrevoando uma quantidade considerável de bons aeroportos, nunca ficando a mais de vinte minutos de nenhum deles. Ou seja, a qualquer momento, se a brincadeira deixasse de ficar divertida, poderíamos parar tudo e pousar.
Decolamos com tempo bom, e o primeiro controlador já perguntou, enquanto cumulus gigantescas se erguiam à nossa esquerda: “Is your aircraft equipped with weather radar?” A minha resposta foi quase envergonhada. “Negative, sir.” No que ele respondeu “Ok, I’ll keep you out of the strongest echoes.” Sim, ele não estava lá para nos pedir estimados, radiais e distâncias, mas para nos ajudar a chegar em segurança no nosso destino. Foram quarenta minutos voando na direção sul, e após deixarmos Punta Gorda à nossa direita, já sob o controle do Miami Center, aproamos La Belle. De lá, voando praticamente todo o tempo fora das nuvens, fomos autorizados direto PETNE, intermediate fix da aproximação RNAV para a pista 12 em Stuart.
Como esta estava fechada, Bruno faria o circling to land para a pista 7, segmento visual de uma aproximação por instrumentos. No fim das contas, chegamos em Stuart com tetos confortáveis de quatro mil pés, e visibilidade em torno de 7 milhas terrestres, e a execução da aproximação por instrumento foi mais uma formalidade que uma necessidade. Bruno fez uma aproximação impecável e, diferente de mim, um lindo pouso.
Ao fim daquelas 3.9 horas de voo, 1.9 na última perna, completamos tranquilos nossa missão, com um importante ensinamento: não é qualquer dia nem qualquer lugar que permite a travessura de se decolar com 50% de chance de pousar no destino.