Porque você não deveria desistir dos reloginhos. Ainda.
O título deste artigo faz alusão ao genial livro do biólogo Richard Dawkins sobre a Teoria da Evolução, e aos muitos pilotos, entre os quais talvez eu me inclua, que ainda apostam nos reloginhos em detrimento dos mais avançados recursos de aviônica embarcada hoje em dia.
Quando eu era pequeno, relógios digitais eram uma febre mais ou menos recente, e a despeito do esforço de alguns professores do colégio, eu tinha dificuldade em “ler” as horas nos relógios de ponteiros convencionais. Por resultado, acabei pedindo aos meus pais um relógio digital, com o qual um mundo de pontualidade se revelou para mim. Da hora certa de parar de brincar na rua a cronometrar quanto tempo eu ficava sem respirar debaixo d’água, aquela pequena maravilha serviu aos meus propósitos infantis com maestria. Muitos anos depois, felizmente, eu consegui dominar os ponteiros, talvez com a ajuda dos altímetros de Cessna que eu via no Flight Simulator.
Foram muitos e muitos anos até eu começar de fato a envolver-me seriamente com a aviação, e em especial com o voo por instrumento. Por uma coincidência não planejada, acabei por tirar minha habilitação IFR em aviões convencionais, e a presenciar a dificuldade de alunos que vinham dos glass cockpits com aquelas pequenas jóias que atendiam pelo nome de “round gauges” ou ainda “steam gauges”, o que denota ainda mais antiguidade. E isso ajudou a massificar minha opinião sobre a importância de, na aviação, dominar-se o mais difícil para só então entregar-se ao mais fácil.
A discussão não é tão trivial quanto se você prefere Boeing ou Airbus, mas por vezes é tão apaixonada quanto, e recentemente foi levantada por Raul Marinho no seu blog “Para Ser Piloto”, contando inclusive com um link para o ótimo texto de Brent Dalrymple. Eu seria tolo se dissesse que os reloginhos são mais cômodos que um G1000, mas seria ainda mais leviano ao dispensar completamente a importância do aprendizado no modo convencional. É lógico que giroscópios eletrônicos são mais precisos e confiáveis que as parafernalhas mecânicas que fazem um painel de reloginhos funcionar, mas ao meu ver, ainda é cedo para dispensarmos a instrução básica neles. O argumento é em parte análogo ao “Paulistinha versus Cessna” ou ao “Diamond versus Seneca”, e dizer que existe uma receita perfeita é pretensão demais. Porém, de fato ainda dependemos bastante do conhecimento da radionavegação convencional para abandonarmos os reloginhos completamente. Abaixo vemos uma das cartas de aproximação para o aeroporto de Piarco, em Trinidad e Tobago, no Caribe. Como se vê, é um ILS com fixos de aproximação baseados em VOR e NDB. Seja num G1000 ou num six pack, você terá que selecionar o course 134/TO para o VOR POS para achar tanto CURRY (20 milhas do VOR na radial 314) quanto SHARK (15 milhas do VOR na mesma radial).
Abaixo, como você veria o painel do seu Cessna 172SP G1000 passando CURRY rumo a SHARK.
Além do moving map, que aumenta sua consciência situacional de maneira absurda, você tem reproduzido um RMI (radio magnetic indicator) no PFD (primary flight display), sobrepondo um attitude indicator (horizonte artificial) gigantesco, enfeitado por uma speed tape à esquerda e um altímetro no mesmo formato à direita. Praticamente todas as informações que você precisa estão ali, dispostas de forma clara e objetiva. Não, eu não vou negar que isso é maravilhoso. Mas se temos isto tudo, para quê aprender assim?
Sim, estamos na mesma velocidade, mesma altitude, e no mesmo ponto geográfico: acabamos de passar CURRY e estamos indo rumo a SHARK. Como eu sei? Por que os reloginhos me dizem. O DME está em forma digital, no painel de rádios, mas a radial 314 (no caso, o course selecionado é 134/TO, a recíproca de 314/FROM)) aparece nos dois instrumentos à direita, e o terceiro, embaixo, um ADF, aponta relutante – como todo ADF – para o NDB que baliza o localizador. E qual a vantagem de se aprender isso? Bom, há algumas. A primeira: não há moving map aqui, o mapa está dentro da cabeça do piloto, que cruzando o que seus reloginhos mostram com a carta, consegue projetar onde está. Cada dia mais parece algo bizarro, na medida que temos tablets e celulares com GPS a bordo, e aos poucos vai soando até corajoso e inconsequente, mas durante a maior parte da História da aviação, foi assim que se voou. A segunda razão de ser vantajoso aprender-se pelos reloginhos é a velocidade de raciocínio: é muito mais exigente olhar esses ponteiros vacilantes e deduzir onde se está do que simplesmente olhar um mapa colorido com um avião desenhado. Seu scan fica muito mais rápido, pois os instrumentos e suas informações estão separados, além do que muitas vezes voar um avião de reloginhos significa voar um avião sem piloto automático, e aí haja rapidez de raciocínio e habilidade cirúrgica na pilotagem. A instrução de voo IFR em geral é na mão, seja em reloginhos ou glass, então, dessa parte ainda não escapamos. Some-se a isso uma carta aberta, uma lanterna e água escorrendo pela entrada de ar numa noite fria dentro da camada e você viverá o que eu vivi no meu treinamento IFR com Tom, um grande instrutor novaiorquino que é dos grandes aviadores que conheci. Sem chauvinismo do treinamento IMC em reloginhos, mas é uma experiência enriquecedora. A terceira grande razão para se aprender IFR do modo convencional é menos óbvia: as companhias aéreas gostam. Se é nelas que você pretende voar, melhor ter isso em mente.
Aqui você vê exatamente o mesmo ponto geográfico. Meia milha antes e 100km/h mais rápido, na verdade. Esta é a maneira que você veria em um Boeing 737 Next Generation fazendo esta mesma aproximação. O ADF convencional está lá no stand by, apontando para o NDB. Também está lá, selecionado no VOR 2, o ponteiro a apontar para Piarco (116.9). Como no EFIS control panel, apenas os VORs estão selecionados, vemos apenas a radial 314 desenhada em verde no ND (navigation display), e sem surpresa constatamos SHARK cinco milhas à frente ao passarmos CURRY. Mas tudo isso é backup: com dois GPS fornecendo uma precisão de 0.05 milhas ao sistema de navegação do avião, o nosso Boeing está mais perto de onde deveria sem usar rádio nenhum do que a maioria dos Cessnas conseguiria usando todos os recursos de radionavegação existentes. Duas maneiras diferentes de se chegar ao mesmo resultado. Mas se os aviões comerciais modernos têm tantos recursos, por que as companhias exigem o conhecimento da navegação convencional de maneira tão explícita? Antes de mais nada, cobrar G1000 numa seleção seria injusto, afinal nem todos tiveram experiência prévia no equipamento. Por outro lado, navegação convencional ainda é a base de tudo, portanto os simuladores IFR usados na seleções são justamente os com reloginhos. Essa é uma ótima razão, por si só, para o aluno de IFR aspirante a piloto comercial buscar aprender IFR da maneira difícil e largar, pelo menos por enquanto, a ideia de aprender IFR – e até mesmo o PP – num avião G1000 – a outra geralmente é o preço. Mas as companhias vão além: o moving map dos aviões comerciais a jato estão ligados ao ADIRU – air data and inertial reference unity. Ou seja, se você perder o inercial ou mesmo o próprio FMS – flight management system – você perde junto o moving map. Claro que uma pane dessas é extremamente improvável, além do que temos dois FMCs e dois ADIRUS a bordo, mas isso não quer dizer que você não deva estar preparado para voar um 737 como se estivesse voando um Seneca.
Mesmo nas seleções em companhias estrangeiras para pilotos que já venham da linha aérea é padrão pedir-se o que chamamos de raw data, ou seja, navegação com dados “crús”, como vemos na tela acima. Não é uma tendência que some do dia para a noite.
Minha experiência com reloginhos e glass cockpits me faz ter uma impressão bastante clara: os glass são ótimos para voar, confortáveis, confiáveis, e muito seguros. Trazem uma gama de informações que simplesmente não existem nos painéis convencionais, e não à toa estão se tornando a referência da indústria, mesmo da aviação leve, mundo afora. Mas aprender a voar IFR apenas neles envolve um risco muito mais grave que não passar na seleção de uma companhia aérea: todos estes recursos atrofiam quem sabia voar reloginhos, mas para quem sequer aprendeu, eles simplesmente deixam de desenvolver uma parte essencial da consciência situacional de um piloto. Por isso eu encorajo tanto as pessoas a continuarem aprendendo e voando reloginhos, e a praticar mesmo depois de estarem a bordo de um equipamento que disponha de recursos avançados de aviônica. A combinação “simulador G1000 + avião reloginhos” é ao meu ver, a mais adequada para estes tempos de transição que vivemos. Talvez um dia eu mude de ideia. Talvez daqui a 10 ou 15 anos vejamos os reloginhos como vemos o LORAN hoje em dia. Talvez sejamos a última geração de pilotos a aprender VORs, talvez, num mundo cada dia mais povoado de drones, sejamos a última geração de pilotos propriamente ditos. Mas ainda não. Ainda não.