Dois pesos e duas medidas
A importância dos cálculos de peso e balanceamento na aviação geral e de instrução
Por Enderson Rafael
Poucos assuntos são tão sérios e tão regularmente negligenciados na aviação de pequeno porte quanto o peso e balanceamento.
Enquanto nenhum Boeing ou Airbus decola sem esses cálculos feitos, aviões com muito menos potência e capacidade os ignoram sumariamente, colocando em risco as vidas de quem está a bordo e no solo também. O que precisamos é entender que estes cálculos não são difíceis, pelo contrário, são bastante simples, e além de um respaldo legal para o voo, trazem a segurança de o piloto poder esperar daquela aeronave parâmetros prometidos pelo fabricante. Para isso são necessárias algumas contas simples. Qualquer outra coisa é aposta.
Na FAA, os cálculos de peso e balanceamento são exigidos desde os primeiros voos do PP, então é algo que em pouco tempo fica natural para o aluno. Uma das aeronaves utilizadas para instrução inicial nos EUA, assim como no Brasil, é o Cessna 152, por ser uma aeronave bastante segura e de baixo custo (no Brasil cerca de R$ 370/h, nos EUA cerca de US$ 90/h).
Comecemos pelo começo: o CG, ou centro de gravidade, é o ponto de equilíbrio do avião. Existe uma margem para esse centro, e todo o peso de carga, passageiros e combustível, que devem ser distribuídos de forma a não exceder nem os limites máximos de peso, nem os limites máximos de distribuição. Nos EUA usamos os pesos em Libras, e eles vem descritos da mesma forma no POH (Pilot Operating Handbook), e a conversão para quilos é simples: cada libra equivale a 0,453Kg, ou 1kg=2.2049lb ou simplesmente 2.2lb aproximadamente. E 2.2 é um número mágico: é o dobro mais 10%. Ou seja, se você pesa 70kg, é fácil calcular: 70×2=140. Mais 10% (14), é igual a 154lb.
Outra unidade presente no manual do avião é “inches”, ou seja, polegadas. 1″=2,54cm. Como você verá no gráfico 6-12 do manual do Cessna 152, o limite do CG do simpático avião vai de 31 a 36,5 polegadas. Ou seja, temos um envelope de 5,5″, apenas 13cm! Isso em um avião com 8 metros de comprimento. Para você ver como não se brinca com peso e balanceamento. E não foge disso em nenhum avião: em um Seneca não chega a um metro, e mesmo num Boeing 737 não passa muito disso. Basta sair desse envelope para o avião se comportar de maneira estranha e até incontrolável, como o assustador vídeo do 747 que caiu no Afeganistão depois que a carga que ele levava se soltou nos lembra.
Outro conceito importante: peso e momento. Peso é o peso, sem mistério. Se você pesa 70kg, pesa 154lb, massa vezes a gravidade. Momento é outra coisa: é o peso multiplicado pela distância com relação a um ponto específico, a famosa alavanca. No Cessna 152, o manual traz a linha datum exatamente no firewall que separa o motor da cabine de pilotos, então você deve multiplicar o peso pela distância em inches de onde ele está com relação a essa linha datum, e cada estação tem um número em polegadas. Por exemplo: para o piloto e o passageiro, usa-se 39. Para o combustível, 40, e para bagagem 64. Então, se piloto e passageiro pesam juntos 300lb, temos um momento de 300 x 39 = 11700. Um Cessna com tanque cheio leva 24.5 US gallons de avgas (1.5 são unusuable fuel e entram no peso básico do avião, juntamente com o óleo). 1 galão pesa 6lb, então temos com tanque cheio 147lb de combustível. Multiplicado pelo “arm” de 40″, temos um momento de 5880. O cálculo também pode ser feito em kg x mm, unidades mais comuns aos brasileiros. E por aí vamos.
Pois bem: há duas maneiras básicas de se calcular os pesos e momentos do avião. Você pode multiplicar pelo “arm” que é dado para aquela estação como fizemos até aqui ou usar um gráfico que facilita esses cálculos. Este abaixo tem polegadas, galões e libras, mas também tem litros, milímetros e quilos, para felicidade de quem voa no Brasil. Então, para facilitar para você, vou converter tudo pras unidades daqui, embora eu tenha aprendido em libras, polegadas e galões.
Cada avião tem um peso básico específico, que depende do peso de tudo que está instalado nele, até a tinta que foi usada para pintá-lo. Digamos que temos um Cessna 152 cujo peso básico vazio dele é 519kg, com CG de 809mm, useful load de 240kg e momento de 419871. Estes dados estão no avião e são itens obrigatórios.
Então vamos começar a brincadeira. Hoje sairemos com tanque cheio e duas pessoas de 70kg cada e 5kg de bagagem. Duas pessoas de 70kg são 140kg. Mais 5kg de bagagem, 145Kg. Mais tanque cheio, 92.7 litros, que equivalem a 66,7Kg (0,72kg/L). Logo, temos 140+5+66,7 = 211,7Kg. Portanto dentro do nosso peso máximo disponível de carregamento de 240kg.
Para verificar isso com o gráfico acima é muito simples: basta pegarmos os pesos e colocarmos lá na linha correspondente: a primeira linha, contínua, diz respeito ao piloto e ao passageiro (ela também diz respeito ao Cessna 152 com long range fuel tanks, mas não consideraremos isso pois o avião do nosso exemplo tem o tanque standard, que usa a linha pontilhada abaixo). Você pega a linha lateral e projeta no gráfico, 140kg sai em uma reta até a linha contínua e dali, você a projeta pra cima pra saber o momento: 140000kg/mm (linha vermelha). Fazemos a mesma coisa com o combustível na linha pequena espaçada: 72000kg/mm (linha azul). Agora com a bagagem na linha grande espaçada: 10000kg/mm (linha verde). Usando esse gráfico, você nem precisou fazer as contas. Logo, tem menos chance de errar.
Mas não dá pra evitar as contas pra sempre. Não se assuste, no entanto: elas são tão simples quanto vitais. Colocamos os dados que temos e vamos somando. Temos o basic empty weight e seu momento, assim como para o piloto+pax e pra bagagem. Somamos as duas colunas e teremos o zero fuel. Dividimos o momento do zero fuel pelo peso do zero fuel e temos o arm, que precisamos saber pra ver se o avião está dentro do envelope. Adicionamos o combustível e teremos o ramp weight, ou seja, o peso do avião pronto para o táxi. Coloquei os sinais de +, – e = para facilitar o entendimento. Também verificamos o arm dele, e veremos que ambos estão nos limites do gráfico 6-12, que reproduzirei mais abaixo.
Para chegar ao peso de decolagem (Take off weigth), precisamos estimar o quanto gastaremos para chegar até a cabeceira e subtrair isso do nosso “ramp weight”. Um Boeing 737-800 considera 200kg de combustível para esse fim. Para o “start/táxi” de um Cessna 152, seremos bem mais econômicos: 11kg. O momento você calcula usando a tabela e também subtrai do momento anterior.
Pronto: já podemos colocar todos estes dados dentro do nosso gráfico de peso e balanceamento (o tal gráfico 6-12 do POH do Cessna 152).
Como vocês puderam perceber, estão faltando o cálculo do “enroute fuel burn” e o “landing weight”. Esses cálculos envolvem performance, assunto que abordaremos em um próximo artigo. Afinal, o quanto você vai gastar de combustível na etapa vai determinar o seu peso e balanceamento durante o voo e durante o pouso.
Espero que os cálculos mostrados aqui tenham ficado claros, pois a ideia é mostrar que peso e balanceamento é algo mais fácil do que parece, e obrigação de todo piloto. Você já deve ter visto muita gente que costuma voar fora do envelope dizendo que “ah, mas tem uma margem de segurança aí”. Então eu pergunto: sendo a capacidade de carga um argumento vital de vendas, você acha mesmo que a Cessna ou qualquer outro fabricante venderia uma capacidade abaixo da verdadeira só para agradar pilotos preguiçosos? Um grande abraço e bons voos!