Gelo no carburador, quem nunca?

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Oscar Lima Alpha! Recentemente o excelente site de aviação “Bold method” trouxe um rápido artigo sobre o temido “carb ice”, com dados inclusive: nos EUA 212 acidentes foram atribuídos a este invisível inimigo no espaço de uma década.

Mesmo em tempos de seca no Brasil, ele está sempre presente, e não custa relembrarmos o que é, como se forma, e como combatê-lo e evitá-lo.

O voo era de DeLand para Wauchula, duas cidades das quais você talvez nunca tenha ouvido falar. Era um voo de pouco mais de uma hora, passando por cima de Tavares e Lakeland, de forma a livrar algumas aéreas militares e o espaço aéreo de Orlando, na Florida. Era um dia de sol, temperatura agradável e a umidade não estava especialmente alta.

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Rota no SkyVector

Já seguindo na direção do VOR da cidade sede da Sun N’ Fun, nosso Cessna 152 estava a 4500 pés sobre um imenso bosque cortado por uma estrada de terra, cerca de dez milhas a oeste da Disney World. Eu estava de safety pilot, e meu amigo Leandro na esquerda como piloto em comando. Naquele ponto, Orlando Approach já nos havia passado para Tampa Approach, mas ainda não conseguíramos contato com a cidade na costa oeste da Flórida.

carb_ice1_canal_pilotoGreen Swamp Wildlife Management Area, entre Leesburg e Lakeland, na Florida,
a vasta área selvagem que sobrevoávamos quando o gelo começou a se formar.

De repente o motor começou a soluçar. Os RPMs, que estavam em cerca de 2300, começaram a cair para 1500 e voltar, e manter a velocidade e a altitude começou a fica complicado. Imediatamente, puxei o carb heat, e os RPMs caíram ainda mais. Com ar quente entrando nos cilindros, a potência se perdia a olhos vistos. Leandro começou a buscar pistas que tivéssemos disponíveis em volta. Em meio minuto de tensão os RPM começaram a se estabilizar, ainda que em valores abaixo de 2000. Perdíamos algumas centenas de pés para manter a velocidade. Começamos a voar em ziguezague, desviando da rota para passarmos o mais próximo possível de todas as pistas que tivéssemos pela frente. As dez milhas entre as pistas de grama de Seminole Lake Glideport e Burntwood foram as mais longas do século. Ao sobrevoarmos Lakeland, os RPMs já haviam voltado para valores decentes, já havíamos recuperado nossa altitude e, por precaução, mantivemos o carb heat levemente aberto o resto do voo. Meia hora depois conversávamos na mesa de piquenique embaixo da grande árvore de Wauchula com dois amigos que estavam algumas milhas à frente em outro Cessna.

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Os dois Cessnas 152 descansam sob a bela árvore de Wauchula antes do voo de volta.

Mas como o gelo no carburador se forma? Bom, é muito comum abrir-se o carb heat quando se entra em uma nuvem ou em chuva, e é sempre recomendável vir para pouso com ele aberto. O carb heat desvia o ar quente que está em volta do motor para dentro do carburador, derretendo o gelo que tenha se formado na parte do motor onde é controlada a quantidade de ar/combustível que entra no motor – throttle ice. Com a diminuição da densidade do ar no tubo de Venturi que se forma ali, a umidade no ar condensa e congela na borboleta e nas paredes do tubo. Uma vez ligado o carb heat, esse gelo derrete, se desprende e passa pelos cilindros antes de ser eliminado do motor. Isso derruba os RPMs e faz o motor engasgar. Mas é isso ou perder o motor totalmente quando a quantidade de gelo for tão grande que o ar simplesmente pare de entrar no motor. Ou seja, a coisa piora antes de melhorar, não se assuste.

O segundo tipo de gelo é o vaporization ice: quando o combustível é vaporizado antes de entrar no cilindro, qualquer água no ar ou que ele contenha condensa e se solidifica, em forma de gelo. A solução é a mesma: carb heat e um pouco de sangue frio e paciência.

E ao terceiro tipo, nem as aeronaves mais modernas que usam injeção de combustível estão imunes. É o impact ice: se você voa dentro da nuvem ou chuva num dia frio, é algo bem provável e ao qual você deve estar atento. Os AIRMETs e SIGMETs alertam, e é sempre bom estar preparado. A umidade encosta numa superfície fria e vira gelo. Pode se formar na entrada de ar do motor, no filtros de ar ou no carburador. Carb heat nele também. Aeronaves que usem injeção de combustível têm a opção do alternate air, que levará ao mesmo resultado. E claro, faça-nos o favor de sair da zona de formação de gelo, afinal aeronaves mais simples não têm meios de lidar com isso indefinidamente.

Por fim, é melhor prevenir do que remediar. Sob qualquer suspeita de gelo, use o carb heat. Usá-lo totalmente aberto piora muito o desempenho do motor, então é melhor nem deixar chegar ao ponto em que você tenha que fazê-lo. E sempre em descidas longas e aproximações finais use essa eficaz arma contra o carb ice, sabendo de suas vantagens e limitações. E então, quem sabe um dia, nos encontremos na mesa de piquenique de Wauchula para conversar sobre os causos que passamos graças ao traiçoeiro carb ice. Bons voos!