Navegar é preciso

posted in: Variedades | 1

Por Enderson Rafael

A frase de Fernando Pessoa, segundo Plutarco, também proferida pelo general romano Pompeu dezenas de séculos antes, traz o sentido de “precisão” e de “necessidade”, num genial jogo de palavras. E embora ambos tenham-na dito com relação aos mares, aos ares ela é usada de forma muito parecida. E ainda que a um profissional da aviação a necessidade exija mais raciocínio que a precisão, aos alunos-pilotos costuma ser o oposto.

Tratamos no último artigo do conceito de gerenciamento de combustível. Do porquê ele é importante e em que coisas devemos nos pautar. Hoje, veremos como calcular nosso consumo, tarefa essencial a um bom planejamento de voo. E, para calcular nosso consumo, primeiro precisamos saber quanto tempo ficaremos no ar. É aí que entra a navegação. Hoje tomaremos nosso Cessna 152 em Florianópolis (SBFL) e iremos até Paranaguá, no litoral paranaense (SSPG). Será uma navegação visual, mas veremos como rádio auxílios podem nos ajudar na empreitada, ainda que não sejam indispensáveis.

Checamos o tempo, temos muitas nuvens a partir de 7000 pés em toda a nossa rota. Isso influenciará no nível de voo que escolheremos para hoje, pois precisamos, pelo regulamento brasileiro, enxergar o chão por metade do espaço abaixo de nós para permanecermos sob regras de voo visuais (VFR). Logo, escolheremos um nível abaixo do FL070. Como estamos VFR, ficamos entre FL065 e FL 055. Para saber qual o correto, usaremos a regra “PI”. Se a rosa dos ventos é um círculo, dividimos a mesma ao meio, de cima a baixo. Do lado esquerdo é “par”, do lado direito, “ímpar”. Lembrando que o direito vai de 000o a 179o e o esquerdo de 180o a 359o.

navegar_e_preciso_canal_piloto

Pegamos a WAC 3313 e traçamos uma linha reta de Florianópolis até Paranaguá. Dividiremos esta reta em quatro segmentos. Quanto mais familiarizado com a rota você está, mais longos poderão ser estes segmentos, pois quanto mais próximos, menor a chance de você se perder. Neste caso, com o recorte do litoral nos ajudando, utilizaremos estes segmentos para outro fim, vocês já verão.

Nossa rota, nesta representação montada no excelente Sky Vector está desenhada abaixo:

navegar_e_preciso_2_canal_piloto

            Em termos de True Course (proa verdadeira), temos na etapa até Paranaguá, uma proa de 000o. Utilizando a variação magnética desta região (lembrando da regra west is best, east is least. em que somamos a variação para oeste e subtraímos para leste), temos algo como 18o de Magnetic Course (rumo magnético). Logo, escolheremos um FL ímpar, o FL 055. Segundo a WAC (world aeronautical chart), atravessaremos quadrantes com obstáculos até mais altos que isso, ainda que várias milhas distantes da nossa rota específica, mas isto não é um problema, afinal nos manteremos VFR – e portanto nos separando visualmente de obstáculos e tráfegos – o tempo todo.

            O primeiro segmento de nossa rota nos leva do aeroporto de Florianópolis até nosso TOC: top of climb. Segundo a carta de “time, fuel and distance to climb” na seção de performance do Cessna 152, o valor será de 12NM, em 10 minutos, gastando 1,4 galões se usarmos ISA e sem vento.

navegar_e_preciso_3_canal_piloto

Isto coloca nosso TOC no norte da Ilha de Santa Catarina, a exatas 35NM do través de Navegantes. Como no Brasil não dispomos de dados de vento de altitude para níveis tão baixos, nos resta calcular o tempo de voo usando apenas a True Airspeed fornecida pelo manual e a distância das pernas da rota. Uma vez em voo, esses valores podem e devem ser atualizados para evitar surpresas. Primeiro vamos descobrir a True Airspeed (velocidade aerodinâmica verdadeira) usando a “cruise performance chart”.

Escolhemos usar 2300RPM no nosso voo de cruzeiro, o que nos dará, arredondando como no exemplo anterior, 95 nós de True Airspeed e 4.9 galões por hora de consumo.

navegar_e_preciso_4_canal_piloto

Como sempre dizemos aqui, sempre considere valores mais medíocres do seu avião e de você mesmo, afinal, todos estes dados foram calculados por experientes pilotos de teste em aviões novos – o que reconheçamos, não é o seu caso. Para ilustração, quando eu fazia minhas longas navegações em Cessna 152, 172 e Archer III – voei mais de 150 horas assim por boa parte da costa leste dos Estados Unidos – considerávamos 6 galões por hora de consumo para o Cessna 152, e sempre acertávamos na mosca ou um pouco acima na hora de abastecer. Então, como dissemos no artigo anterior, além do manual, o consumo deve ser estimado usando sua experiência na aeronave. Então, para sermos mais conservadores, usaremos uma True Airspeed de 90 nós e um consumo de 6GPH. Assim, se tomarmos alguma surpresa, será para melhor. Além claro de facilitar a conta: pra cada minuto de voo, um décimo de galão.

Vamos preencher nossa Log de navegação: na primeira linha, os valores estimados. E conforme voamos, os atuais. Digamos por exemplo que ao chegarmos no nosso cruzeiro, estamos com um vento de proa de 10 nós. Nossa Ground Speed cairá para 80 nós. Ao invés de 1:25 de voo, levaremos 1:36, elevando nosso consumo em 1.1 galão – considerando que saímos com tanque cheio de Floripa, ao invés de pousarmos em Paranaguá com 14.4 galões, pousaremos com 13.3. Quanto mais longo o voo, e quanto mais fortes os ventos encontrados em altitude, mais importantes são esses cálculos. E claro, cada vez que você mudar de proa na rota, também convém recalcular a Ground Speed. Com um computador de voo EB6, você encontra até sem muita dificuldade qual o vento está influenciando na rota.

navegar_e_preciso_6_canal_piloto

Nossa rota, por exemplo, se afasta de Florianópolis na radial 018 do VOR FLN (113.4). Após atingir o cruzeiro, que proa você precisa manter para ficar em cima da radial? Se for a proa magnética de 18o, o vento ou é calmo, ou é de proa ou de cauda. Qualquer coisa diferente disso, e poderemos calcular que vento nos atinge. Se nosso course for 18o, nossa TAS 90 nós, nossa GS 86 nós e nosso heading (para manternos em cima da radial) for 22o, o EB6 nos dará um vento de 77 graus com 7 nós aproximadamente. Claro, quem usa uma aeronave com G1000 não precisa calcular nada disso, pois o avião já traz essas informações na tela.

E como determinarmos o través de Navegantes? Basta selecionarmos no nosso ADF a frequência do NDB de lá: 235. Ao passarmos no través de NVG, a agulha apontará 90o pra esquerda (270o num ADF de limbo fixo). Para Joinville é possível fazer a mesma coisa: selecionando no seu rádio de navegação 115.1, e no course do seu VOR a radial 110 de JNV, quando você cruzar esta radial, estará no través de Joinville, a 41 milhas náuticas do destino, Paranaguá – que também tem um NDB para auxiliá-lo, o PNG, com frequência 340.

Isso não fará do seu voo IFR nem da sua prática “visumento”, afinal você se manterá todo o tempo sob regras de voo visuais. Mas irá auxiliar na sua navegação e muito. Aqui cabe até eu contar um causo.

Certa vez, na minha primeira navegação solo do PP, decolei de Gainesville, Florida, de volta para DeLand via Palatka. A Florida lembra, em certos aspectos, o interior de São Paulo: é tudo muito parecido e se perder é muito fácil quando você ainda não decorou o desenho dos lagos. E eu, pela segunda vez em Gainesville na vida, não tinha decorado nada. Prevenido que sou, havia anotado em minha log de navegação que me afastaria de Gainesville pela radial 097 do VORTAC de lá (VORTAC é um VOR que divide a instalação com um TACAN, que é o equivalente militar do mesmo). Decolei da pista auxiliar 25 com curva à esquerda, me afastei para livrar a final da pista principal e curvei de novo por cima do Newman Lake. Sem perceber, achando que estava na direção certa, comecei a subir para cruzeiro na direção da área restrita 2903.

navegar_e_preciso_5_canal_piloto

Como vocês podem perceber, uma Sectional (a carta padrão VFR da FAA) tem o dobro da ampliação da WAC e é bem mais poluída, porém, traz muitas coisas que a WAC não traz – incluindo as frequências dos rádio-auxílios. Pois bem, estranhando a paisagem à minha volta, naquele hiato entre sair da frequência da torre de Gainesville e chamar Jacksonville Departure (conhecido como JAX Departure), resolvi apelar pro meu VOR. Coloquei a radial 097 ali e Eureka! Eu estava ao norte da mesma, me afastando num ângulo de mais de 30o. Virei à direita e a reinterceptei, encontrando o caminho pra casa. Pois é, num mundo sem GPS, é a assim que a gente se vira. Afinal, navegar é preciso.

Enderson Rafael é Piloto Comercial MLTE/IFR pela FAA e ANAC, Comissário de Voo, escritor e um dos representantes no Brasil da Treasure Coast Flight Training, na Florida – EUA.

 

Renato Cobel
Redes