Oscar Lima Alpha, dentro dos conceitos que vimos no artigo anterior estava o de que um avião bimotor tem mais chances de se sair bem numa pane de motor do que um avião monomotor. Voando o avião dentro do envelope de peso e balanceamento, dá para estimar com acuidade seu desempenho em caso de uma pane mono, e então, seguir para um pouso de emergência com boas margens de segurança. Mas tem gente séria e experiente que vai argumentar que um bimotor, por ter dois motores, tem duas vezes mais chances de ter uma pane do que um monomotor. Pode até ser, mas quem tem dois, tem um. Já quem tem um… e não é só isso.
A comparação correta, neste argumento, seria de um monomotor que perdeu o único motor com um bimotor que perdeu os dois motores – afinal aí sim ficamos sem opção e estaremos indubitavelmente caindo. E é aí que a falácia do argumento se revela: ainda que motores aeronáuticos sejam muito mais confiáveis do que o de carros – todos monomotores, por sinal – muitas coisas podem provocar a perda do único motor de uma aeronave monomotor. Vazamentos de óleo, ingestão de pássaro, falha catastrófica interna do motor – a natureza das falhas possíveis variam com o tipo de motor, seja a pistão, turbohélices ou jatos, claro – e obviamente, falta de combustível. Já no caso dos bimotores, embora cada um dos motores esteja individualmente sujeito à essas falhas, muito poucas coisas podem levar à perda dos dois ao mesmo tempo. O A320 que pousou no Rio Hudson nos lembra que pássaros, ingeridos em ambos os motores em grande quantidade, podem levar a esse tipo de evento. Mas o jeito mais comum de perder todos os motores de um avião multimotor, na esmagadora maioria dos casos, é em uma pane seca.
Em tese, muitas coisas podem acontecer com o combustível a ponto de parar um motor. Ele pode estar contaminado com água ou mesmo sujeira– daí a importância crucial do dreno no check pré-voo; uma manobra pode momentaneamente fazer o combustível não chegar ao motor – em um Cessna 152, por exemplo, quem leva o combustível dos tanques ao motor é a boa e velha gravidade, pra desespero dos engraçadinhos que ficam dando zero G no avião; vapores podem se formar em aeronaves com injeção de combustível, como o Cessna 172SP, ou o Seneca; você pode ter esquecido de mudar a seletora, como no Archer III; ou mesmo uma bomba mecânica ou elétrica responsável por levar o combustível até os motores pode vir a falhar. Mas como comentado no parágrafo anterior, na esmagadora maioria das vezes, o caso é outro: o combustível simplesmente acaba.
E não são poucos os casos em que acidentes aconteceram, seja em monomotores ou bimotores, porque o combustível acabou. E todo piloto tem pelo menos um susto para contar, por mais cuidadoso que seja, afinal, nem mesmo o melhor gerenciamento de combustível do mundo resiste infinitamente à clima ruim, vento de proa, desvios de rota, aeródromos fechados, etc. Hoje veremos o assunto de forma mais conceitual, mas como é nosso recurso maior, vamos estudar o planejamento de combustível.
O primeiro conceito ao qual devemos nos ater é o de usuable fuel. Um Cessna 172M, por exemplo, tem dois tanques com capacidade para 21 US gallons de combustível, ou seja, 42 galões no total. Mas nem tudo isso é considerado quando você vai planejar um voo, pois 4 destes galões entram como unusable fuel. No Cessna 152, são 26 galões no total, dos quais 1,5 unusable. São considerados assim, por estarem nas linhas, ou nos tanques abaixo do nível necessário para serem captados pelo sistema, motivo pelo qual sua quantidade não pode ser medida de forma alguma pelo piloto. São tão unusable, mas tão unusable, que entram no peso básico vazio da aeronave, e até no zero fuel weight. E mesmo quando falamos do combustível com o qual você pode contar, o usable fuel, ele também tem suas limitações. Num Cessna 152, por exemplo, o manual chama atenção para o fato de que “não foram demonstradas decolagens com menos de 2 galões no total, ou 1 galão em cada tanque”. O piloto de teste tem família, provavelmente.
Outra coisa com a qual não se pode contar em aviões pequenos: os fuel gauges, ou em português, liquidômetros. Eles são tão imprecisos e sujeitos a erros, que a maneira correta de se calcular o consumo é pelo tempo de voo, considerando-se o consumo médio da aeronave, seja baseado na experiência do piloto com aquela aeronave em particular, seja com o que o manual prevê para determinados níveis de voo, ajustes de potência (power settings), e ajustes de mistura rica ou pobre – combinação combustível/ar, ajustada para mais pobre à medida que se sobe para compensar a densidade menor da atmosfera.
Mais um conceito fundamental é o disposto nos regulamentos: o RBAC 91.151, por exemplo, dispõe que feitos os cálculos de consumo para a etapa, não se deve decolar para voos VFR a menos que se tenha, após atingir o primeiro ponto de pouso, mais meia hora de combustível considerando-se consumo normal de cruzeiro de dia, e 45 minutos à noite. Os mínimos IFR são ainda mais restritivos – em especial num país imenso com poucos aeródromos, como o Brasil – pois exigem um alternado, mais 45 minutos.
Daí a importância de se calcular com muito cuidado quanto se pretende gastar, quanto se está gastando, há quanto tempo se está voando. Pilotos são profissionais neuróticos com economia de combustível, e devem ser assim mesmo, pois além da altitude, essa é nossa outra cara moeda de troca. Afinal, descontada a licença poética com relação ao peso e balanceamento, como se diz no ditado, “o único momento em que um avião tem combustível demais é quando ele pega fogo”.
Bons voos e até a próxima!