Pouso: a arremetida que deu errado | Por Enderson Rafael

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Foto: Neste registro incrível de Jonathan Luz, um Boeing 737-800 executa uma arremetida a baixa altitude em Congonhas, São Paulo, sob chuva forte. Além da diminuição significativa de visibilidade, precipitações severas podem trazer mudanças repentinas de vento que facilmente justificam uma arremetida como a ação mais segura a ser tomada.


Uma das manobras mais básicas mas menos compreendidas na aviação é a arremetida. Para alguns passageiros, pode ser desconfortável e até aterrorizante, dependendo do nível de conhecimento dos mesmos. Mas não deveria: a arremetida é um recurso do qual os pilotos dispõe para interromper uma aproximação que não satisfaça critérios objetivos ou subjetivos de segurança. Mas, que critérios são esses?

Um conceito bastante difundido entre as companhias aéreas no mundo todo é o de “safety window”. Ou seja, como o próprio nome já diz, uma janela em que determinados valores devem ser respeitados como premissa para que a aproximação e pouso possam ser continuados de forma segura. Os estudos de incidentes e acidentes ao longo dos anos mostraram que grande parte dos eventos em que aeronaves tiveram pousos duros ou saíram da pista durante a desaceleração aconteceram devido ao que chamamos de “unstable approach”, ou aproximação desestabilizada. Cada companhia estabelece suas políticas, e alguns valores de razão de descida, desvio dos eixos laterais e verticais de uma aproximação por instrumento ou excesso ou falta de velocidade passam a caracterizar uma aproximação desestabilizada, e isso então determina que a mesma deva ser descontinuada. Geralmente, desvios momentâneos devido a ventos fortes ou turbulência são aceitáveis, mas na maior parte dos minutos finais da aproximação estes valores devem ser estritamente cumpridos. Alguns outros critérios envolvem potência e componentes de vento de cauda ou través. Se um destes critérios é excedido por mais de alguns momentos ou frequentemente, é recomendado que a arremetida seja conduzida.

Outros critérios que podem levar a uma arremetida são mais subjetivos, e não dependem de parâmetros pré-determinados e conhecidos da tripulação. Uma variação inesperada dos sinais de rádio do glideslope ou localizador podem ser a deixa para descontinuar uma aproximação ou, no mínimo, se a pista já estiver à vista, para que se desconecte o piloto automático e se prossiga visualmente. Algum comportamento inesperado dos motores ou de outros sistemas importantes, ou uma perda de visibilidade abaixo dos mínimos para uma aproximação por instrumento também são razões plausíveis para que se inicie uma arremetida. As aeronaves de linha aérea têm ampla capacidade de lidar com diversas falhas em voo, e em boa parte dos casos, não forçar um pouso em condições abaixo do ideal tende a ser a melhor escolha.

Além da possibilidade óbvia de nem se iniciar uma aproximação, a mesma pode ser descontinuada a qualquer momento, por qualquer razão que se julgue relevante, mesmo antes de altitudes mais baixas, como as estabelecidas para a safety window. Por exemplo, após o início de uma aproximação por instrumentos, se as condições meteorológicas caírem abaixo dos mínimos, há um ponto chamado approach ban, que após cruzado, permite que os pilotos prossigam até os mínimos, se acreditarem que há chances de avistarem a pista. Mesmo no ILS CAT I – com mínimos de 200 pés, se nos mínimos forem avistadas as luzes do approach light system, o piloto pode descer até 100 pés e, em avistando outros elementos da pista, prosseguir no pouso. Já em aproximações mais sofisticadas, como ILS CAT IIIB sem Decision Height, não há qualquer mínimo de teto pré-estabelecido, e o pouso automático acontece sem que os pilotos tenham referência visual prévia com a pista. Mas mesmo essas aproximações requerem respeito à safety window, e no caso do pouso automático, arremetidas tardias devido a degradações do sistema incluem até a possibilidade de a aeronave tocar a pista antes de voltar a voar.

Mas, quando é tarde demais para arremeter? Em tese, segundo a Boeing, após a abertura dos reversos, pois uma vez que isso seja feito, se houver qualquer impossibilidade de fechá-los, um voo seguro não pode ser garantido. Obviamente, aeronaves menores que não disponham de reversores não precisam considerar essa possibilidade, e claro, é sempre saudável lembrar que cabe ao piloto em comando desviar de qualquer regra no interesse da segurança de voo se isso for necessário.

Um bom exemplo de arremetida após o pouso é no chamado bounced landing. Se a aeronave tocar o chão com muita energia, há a possibilidade de ela voltar a subir e depois retornar com mais força, gerando um movimento de seguidos arcos que pode facilmente culminar em um acidente. Neste caso, só há duas possibilidades: ou essa energia é dissipada através de um flare – arredondamento – prolongado que permita o pouso seguro numa intervenção precisa e complicada por parte do piloto ou, o que é mais simples e seguro, uma arremetida seja iniciada. Mas como já ficou claro, um excesso de energia na aproximação final pode ser identificado na maioria das vezes por desvios da safety window, e portanto uma arremetida tardia se torna desnecessária.

Porém, há casos em que a meteorologia prega uma peça nos pilotos. Especialmente com vento calmo e pressão baixa, ou com a aeronave muito leve ou muito pesada, não é incomum que o avião se comporte de maneira inesperada mesmo durante o flare. Um toque firme é sempre preferível à tentativa de suavizar o pouso ao custo de centenas de metros de pista que ficam para trás e podem fazer falta na desaceleração, em especial em pistas curtas, mal mantidas ou contaminadas por água, gelo ou areia. Para isso, é fundamental que os pilotos identifiquem qualquer desvio e o corrijam prontamente. É importante também, que a decisão da arremetida seja feita de forma clara, inequívoca, e seja respeitada pelo colega no caso de uma tripulação múltipla – multicrew. Para ilustrar, há um caso recente em que uma arremetida interrompida em um Boeing 737-800 terminou em acidente.

Fundamental nas aeronaves mais sofisticadas é o conhecimento dos modos de automação embarcados, e o entendimento de seus comportamentos e limitações – por exemplo, nos aviões da Boeing em que se pousa com o autothrottle conectado, este não avança as manetes sozinho após o avião tocar no chão mesmo quando o botão TOGA – take off / go around é acionado, e é necessário que o piloto volte ao básico da arremetida no que diz respeito a pitch and power na hora de executá-la.

Um dos pontos fundamentais das arremetidas é o mindset: quando o fator humano entra na equação de uma decisão que tem apenas segundos para ser tomada, a forma estruturada de lidar com essa questão é essencial para que tenhamos um voo seguro. E nas tripulações múltiplas, o aspecto do CRM é fundamental. Uma das ferramentas mais importantes do crew resources management nesse contexto é a sequência aceita por todos os tripulantes de quatro níveis de intervenção pelo piloto que está monitorando a aproximação, seja ele o comandante ou o copiloto. Como é sabido, em geral ambos alternam as etapas de um voo, e cada um atua em uma perna como pilot flying ou pilot monitoring. O esforço da indústria para que a hierarquia necessária e natural seja minimizada em certos aspectos da operação que não a requerem tem sido louvável ao longo das décadas, em ainda que haja um certo caminho pela frente, muito já se conseguiu, em especial em operadores na qual a cultura de segurança está mais madura e solidificada. Os quatro níveis desta intervenção são conhecidos como ask, suggest, direct and take over. Ou seja, aos primeiros sinais de que algo não vai bem, o pilot monitoring pergunta ao pilot flying sobre o aspecto específico que o está preocupando. Se ainda assim o pilot flying não corrigir esse desvio, o pilot monitoring então usa o nível seguinte de intervenção, sugerindo uma ação específica. No entanto, se a sugestão não for acatada e o desvio continuar, o nível seguinte é o direct, em que o pilot monitoring ordena uma ação imediata ao pilot flying, e se esta não for executada ou suficiente para retornar o voo a um patamar seguro, o pilot monitoring usa o último recurso, que é tomar os controles da aeronave.

Obviamente, em se tratando de pilotos altamente profissionais e bem treinados, muito raramente será necessário mais do que ask ou suggest para resolver uma divergência, assim como determinados cenários podem exigir que algumas etapas desta estrutura de intervenção sejam ignoradas, e o controle seja tomado pelo piloto que primeiro perceber um desvio significativo dos parâmetros de uma operação segura – como num voo de instrução, por exemplo. Mas é fundamental que ambos entendam e aceitem essas ferramentas desenvolvidas para que nossos comportamentos não se sobreponham à normalidade da operação.

Outro ponto importante é a dita compulsão pelo pouso. Seja ela provocada pelo desejo de se voltar para casa ou pela diminuição de alternativas em um determinado voo, é importantíssimo que o atingimento dos mínimos numa aproximação não signifique um compromisso irreversível com o pouso. Como dissemos antes, até a abertura dos reversos é seguro arremeter, e muitas companhias estão mudando o call out de mínimos do pilot flying de “landing” para “continue”, colaborando para que a possibilidade da arremetida não seja descartada cedo demais.

Antes de tudo, um briefing bem conduzido e completo pode dirimir muitas dúvidas, além de ajustar parâmetros que sejam específicos de uma operação, como um glide mais inclinado que leva a uma razão maior do que o comum, ou a aproximação num aeroporto de grande altitude que exija uma configuração antecipada por conta das ground speeds mais elevadas. Visto desta maneira, um pouso se aproxima mesmo de uma arremetida que não deu certo: esgotadas todas as possibilidades que levariam à descontinuação da aproximação, a aeronave toca o solo com segurança. Sempre, em todos os voos, nosso maior objetivo.