Aeronaves trafegando sempre lenta e organizadamente sobre as yellow lines de um aeródromo, mantendo comunicação constante com a frequência de solo do órgão ATS, que está sempre vigilante e atento a tudo que acontece em toda área de manobra. Essa é a visão bonita e ideal da operação de um aeródromo. Todavia, ela deve ser analisada sob uma ótima um pouco mais crítica, considerando que operadores humanos estão sujeitos a diversas falhas. Some-se a isso o volume elevado de veículos e pessoas trafegando, na maioria das vezes, correndo contra o relógio, passando perto de asas, empenagens, radomes, hélices e trens de pousos, e teremos um risco adicional. Neste texto, gostaria de abordar especificamente os riscos de operação que envolvem a pista de pousos e decolagens. Afinal, os momentos mais críticos de um voo acontecem na pista do aeródromo.
O termo em inglês que ganhou fama devido a acidentes infelizmente memoráveis é “Runway Incursion”. No glossário de termos técnicos da ICAO, significa “Qualquer ocorrência em um aeródromo que envolva a presença incorreta de aeronave, veículo ou pessoa na zona protegida e reservada a pousos e decolagens”.
Há diversos registros de perdas de vidas humanas com acidentes motivados por incursão em pista. Cito três dos quais talvez você possa ter ouvido falar: em 1977, no aeroporto de Tenerife, nas Ilhas Canárias, ocorreu o maior acidente aéreo da aviação mundial, que resultou na colisão em solo entre dois Boeing 747, matando 583 passageiros e tripulantes. Cerca de 70 investigadores atuaram no evento e identificaram falhas na comunicação, no gerenciamento de cabine, além de fatores meteorológicos.
As lições dessa tragédia não bastaram para que outros grandes acidentes não voltassem a ocorrer. Em 1984, na Rússia, a colisão do voo 3352 da Aeroflot com veículos em manutenção durante o pouso matou 174 pessoas, incluindo quatro trabalhadores em terra. Falhas na comunicação do controle de tráfego aéreo foram os principais fatores apontados pela investigação. Em 1990, no aeroporto de Detroit, EUA, a tripulação de um DC-9, ao taxiar, fez a curva errada em uma das intersecções, ingressando na pista em uso. Resultado: uma colisão e oito mortos.
Um dos motores de um dos dois 747 envolvidos no trágico acidente de Tenerife
Em 2001, a Comissão de Navegação Aérea da ICAO tomou ações afim de endereçar o problema denominado “Runway Incursions”, ou Incursão em Pista. Diversas áreas críticas foram identificadas como carentes de investigação, as quais tinham relação direta com segurança na pista, incluindo fraseologia, proficiência linguística, equipamento, iluminação e sinalização do aeródromo, representações cartográficas dos aeródromos, aspectos operacionais, consciência situacional, e claro, fatores humanos.
Indicação de Hot Spots em uma carta aeronáutica de aeródromo
Para dar mais ênfase ao tema e encorajar a implementação de disposições pertinentes, a ICAO iniciou uma campanha de educação e conscientização que começou com a busca pelo melhor material educativo disponível, para a inclusão em um kit interativo de segurança de pista. Para endereçar esses riscos e divulgar as ferramentas desenvolvidas para amenizar os riscos de incursões em pistas, o órgão realizou diversos seminários nas mais diversas regiões do mundo, incluindo a América do Sul. Como resultado desses seminários, foi produzido um manual contendo os principais tópicos sobre o tema, voltados para auxiliar governos, organizações internacionais, operadores de aeródromos, órgão ATS e operadores de aeronaves, a fim de implementar a segurança de pista com base nas melhores práticas.
Segundo pesquisa realizada com pessoal técnico operacional em 2001, aproximadamente 30% dos motoristas, 20% dos controladores de tráfego aéreo e 50% dos pilotos já reportaram terem se envolvido em incidentes de incursão me pista. (referência: EUROCONTROL survey, 2001). Segundo este manual da ICAO, incursões em pista podem ser divididas em alguns senários recorrentes, dos quais você já deve ter ouvido algum relato que se encaixa como:
- Uma aeronave ou veículo cruzando a frente de uma aeronave aterrissando;
- Uma aeronave ou veículo cruzando a frente de uma aeronave decolando;
- Uma aeronave ou veículo cruzando a barra de parada obrigatória;
- Uma aeronave ou veículo incerta de sua posição, entrando inadvertidamente em uma pista ativa;
- Uma falha de comunicação resultando em falha em seguir as orientações e/ou procedimento do controle de tráfego aéreo;
- Uma aeronave passando atrás de uma aeronave ou veículo que ainda não livrou a pista.
Exemplo de Runway Incursion registrado em vídeo que resultou em uma arremetida da aeronave na curtíssima final
As estatísticas mostram que, embora a maioria dos acidentes ocorram em condições de baixa visibilidade ou durante a noite, a maioria das incursões em pista ocorrem em condições meteorológicas visuais e durante o dia.
O capítulo 4 do referido manual é talvez um dos mais interessante, pois é onde se concentram as recomendações para a prevenção de incursões em pista. Em uma tradução livre, tomei a liberdade de destacar aqui o item 4.4, que compila as recomendações para Pilotos.
- Pilotos nunca devem ultrapassar as red stops bars quando estiverem alinhando, ou cruzando a pista, a menos que procedimentos de contingência estejam em uso e especificamente autorizem que o façam;
- Pilotos não devem aceitar uma autorização ATC que requeira que cruzem uma pista por uma taxyway oblíqua/angular;
- Se após alinhados na pista mantiverem posição por mais de 90 segundos após autorização, pilotos devem contatar ATC e alertar/informar que estão mantendo posição sobre a pista;
- Pilotos devem ligar as luzes de pouso (landing lights) quando receberem autorização para decolagem ou pouso;
- Pilotos devem ligar as strobe lights quando forem cruzar a pista;
- Se houver qualquer dúvida ao receber uma autorização ou instrução, esclarecimentos devem ser imediatamente requeridos ao órgão ATC antes de executar a instrução;
- Se os pilotos tiverem qualquer dúvida sobre sua exata localização sobre o aeródromo, eles devem contatar o órgão ATC e seguir o procedimento ICAO associado (PANS-ATM, Doc 4444);
- Pilotos devem manter a cabeça erguida e monitoramento contínuo durante a operação de superfície no aeródromo.
O apêndice B contém um guia detalhado sobre melhores práticas de tripulação, incluindo o conceito de “sterile flight deck”, planejando operações de taxi, familiarização com o aeródromo, briefings, procedimentos de taxi, linguagem, cotejamento, auxílios visuais e outros.
A leitura desses materiais trará grande riqueza de conhecimentos técnicos, que não só lhe ajudarão numa futura seleção para um emprego como piloto, mas principalmente otimizarão sua técnica em um tema que por muitos é considerado uma fase do voo que não possui riscos significativos, e muitas vezes é ignorada. Um piloto profissional deve sempre estar antenado às melhores práticas. Em vez de apenas criticar um vídeo de um incidente ou acidente, devemos buscar, de forma técnica, identificar onde as normas foram infringidas e qual seria o procedimento mais adequado. O piloto profissional deve embasar suas opiniões e ações não somente em experiência ou no que acha que é melhor, mas sim nas normas e regulamentos vigentes, não só em âmbito nacional mas internacional. Não estamos no comando de máquinas de milhões de dólares com dezenas de pessoas que nos confiam suas vidas para que improvisemos.
Incursão em Pista não acontece apenas em aeroportos!
Tenha um voo seguro!
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