Siga o Fluxo – As cartas enigmáticas do Seneca
Por Enderson Rafael
Bem no começo do manual de toda aeronave, há uma descrição da performance geral dela. Contém velocidades, desempenho, consumo, quanto de pista ela gasta pra pousar e decolar e outras coisas. Muitos pilotos que ainda se dão ao trabalho de ler um manual, irão parar por ali. Mas é importante, essencial, na verdade, reler o cabeçalho desta descrição: os valores ali descritos consideram uma aeronave dentro do seu peso máximo de decolagem, em perfeitas condições, pilotada por um piloto de testes e o mais fundamental: sob condições ISA. E isso é o mais fundamental, pois todos sabemos que nossas aeronaves são em geral mais antigas e que nós somos provavelmente menos habilidosos que os pilotos de teste. Mas estas duas variantes são difíceis de mensurar e por isso ser conservador nunca é demais. Já os efeitos da atmosfera sobre nossa aeronave são bem descritos nas cartas de performance, e hoje analisaremos a do Seneca, o bimotor de maior sucesso da Piper e também produzido no Brasil pela Embraer sob supervisão da fabricante americana.
Há cinco modelos distintos de Seneca, com diversas combinações de motores e aviônicos, e hoje veremos o PA-34-200T Seneca II, o primeiro a incorporar o turbo e relativamente comum nas escolas de aviação. Ele tem dois motores Lycoming de seis cilindros, com injeção de combustível, que produzem 200HP cada ao nível do mar. Dentre uma dúzia de fatores que afetam a VMC (velocidade mínima de controle), está a do motor crítico. A Piper eliminou o problema colocando no Seneca motores que giram em sentidos opostos. Desta forma, as pás descendentes (e que produzem mais empuxo devido ao Pfactor) estão sempre próximas do eixo vertical da aeronave, diminuindo a “alavanca” da guinada tanto em decolagens e subidas quanto numa pane mono.
Mas vamos às cartas. Bem no começo da sessão de peso e balanceamento do manual, a Piper diz que o Seneca dá uma enorme flexibilidade ao operador: pode-se voar com carga máxima e pouco combustível e carga baixa e muito combustível. As duas coisas ao mesmo tempo, no entanto, não é possível. Portanto, relembra o manual, “com a flexibilidade vem a responsabilidade”. Não faltam exemplos de gente que ignora essas limitações e está viva pra contar. Mas também não faltam exemplos das que morreram achando que iam contar depois. Então lembre-se de fazer os cálculos, muito semelhantes aos que fizemos no nosso primeiro artigo. Mas já fica a dica: só porque um avião tem um determinado número de assentos, não significa que possa transportar aquele número de pessoas todas as vezes.
Digamos que você manteve o avião no seu envelope, chegou a hora de calcularmos a performance dele. No próximo artigo veremos algumas diferenças para os aviões monomotores. Em especial, o quanto a performance se deteriora quando um avião multimotor perde um dos motores. No caso do Seneca, isso chega a 89%. Exatamente: perder um de dois motores não significa perder 50% da performance. Você perde 50% da potência disponível, daí a transformar isso em performance, considerando que o motor que parou ainda está lá pra ser carregado, a coisa complica bastante, e por isso tem gente que realmente acha que voar um monomotor é mais seguro – eu não acho. E não acho porque eu conheço bem mais maneiras de se perder um único motor do que de se perder dois ao mesmo tempo. E claro, se você for bem treinado e seu avião estiver dentro do envelope, a chance de você sair inteiro e sem um arranhão de uma pane mono é indiscutível.
Um dos aeroportos onde é mais comum ver Senecas no Brasil é em Goiânia. Estamos lá hoje, com um Seneca II. No nosso peso de decolagem, de 4000lb – ou 1820kg – nos preparamos para decolar da pista em uso no dia de hoje, a 32, com 2450m de comprimento. Um Boeing acabou de decolar na nossa frente sem dificuldades. Mas e nós, quanto de pista precisaremos? Precisamos de três dados para fazer esse cálculo. Pressure altitude, temperatura e vento. O METAR nos dá QNH de 1016, com vento de 360 graus com 7 nós, e temperatura de 29 graus Celsius. Primeiro calculamos a nossa altitude de pressão: 1016 são 3 acima de ISA – que é 1013, então, tiramos 90 pés – pressão mais alta que ISA desce 30 pés por hPa, pressão mais baixa que ISA sobe 30 pés por hPa. A elevação do campo em Goiânia é de 2499 pés, então nossa pressure altitude hoje é de 2409 pés.
No gráfico, saímos do ponto que representa 29°C verticalmente até encontrar a linha de 2409ft. Feito isso, seguimos horizontalmente, e descemos acompanhando a linha até nosso peso de 4000 lbs. Dali, seguimos horizontalmente de novo até a linha de referência. Pronto, só falta colocarmos o vento na equação. Com uma carta de vento de través ou com o computador de bordo (ou aplicativo de celular que faça esse cálculo, ou se você for MUITO bom em trigonometria, com caneta e papel mesmo), pegamos nosso vento 360/7, aplicamos à nossa proa da pista de 320 graus – pista 32 – e chegamos ao componente de 5 nós de proa, e 4 nós de través. Acompanhamos mais uma vez a linha até aproximadamente 5 nós de headwind e dali saímos horizontalmente. Pronto, gastaremos 1120 pés de pista na corrida de decolagem, ou seja, 341 metros. Como sempre, lembre-se: o piloto de teste provavelmente é mais habilidoso e estava voando um avião mais novo que o seu. Convém esperar uma performance menos incrível da sua parte. Em Goiânia tem pista de sobra até pra pousar de novo se algo der errado logo após você sair do chão, mas em pistas mais curtas, seja mais generoso com a margem de segurança.
Esse gráfico usou altitude de pressão e temperatura diretamente, dispensando o cálculo de altitude de densidade, dado que é fornecido somente em alguns AWOS – estações automáticas de observação de clima que emitem dados de METAR em texto e áudio a cada minuto e é bem comum em aeroportos menores nos EUA.
Hoje vimos a corrida de decolagem, e mostramos como seguir a linha, ou o fluxo, foi a maneira que os engenheiros da Piper encontraram de facilitar e agilizar nossos cálculos de performance. E adaptar-se a linhas é natural para quem sai de uma aeronave mono e vai voar uma aeronave multi, que é muito mais complexa, veloz, com checklists e flows muito mais extensos, com uma inércia bem maior e com um novo problema: as panes monos.
No próximo artigo, calcularemos outro dado tão importante quanto o que vimos hoje: a performance de subida. Quanto de razão conseguiremos com os dois motores, em que condição? Vale a pena acelerar logo que decolamos? E se perdermos um motor, quanto subiremos?
As respostas a essas e outras perguntas, no próximo artigo. Grande abraço e bons voos!