Oscar Lima Alpha, meus caros colegas de Canal Piloto. Faz tempo que não escrevo por aqui, mas com os CP Casts recentes, pelo menos a minha voz vocês têm ouvido. Nos últimos artigos, publicados meses atrás, falamos bastante de assuntos relativos ao curso de Piloto Privado, como peso e balanceamento, performance, e até navegação visual. Hoje, tocaremos pela primeira vez num dos mais encantadores e mágicos temas da aviação: o voo IFR.
IFR vem de Instrument Flight Rules, ou seja, Regras de Voo por Instrumentos, e é um divisor de águas na carreira e formação de todo piloto assim como foi na história da aviação. O voo cego, à noite ou dentro das nuvens, foi o que permitiu à aviação chegar onde chegou. E para todos nós, pilotos, é um marco na formação no que diz respeito ao ganho de precisão na pilotagem e profissionalismo, além de abrir um leque imenso de possibilidades e transformar dias não tão bonitos em ambientes perfeitamente seguros para o voo.
Mas que história é essa afinal de ILS pra chamar de seu? Como pode isso? Bom, primeiro algo bem básico para se saber sobre as aproximações IFR: existem dois tipos: as de precisão e as de não-precisão. As de não precisão são mais comuns, e em geral, contam apenas com referências laterais de navegação, portanto têm mínimos mais altos. Bons exemplos são as aproximações NDB ou VOR, que geralmente levam a mínimos em torno de 500 pés sobre a pista, e usam uma MDA: minimum descent altitude. Ou seja, você desce até aquela altitude e nivela, esperando ver a pista. Depois de algum tempo, se não vir, arremete – o MAP (missed approach point) pode ser definido por tempo, distância de um auxílio ou por um fixo específico. Mesmo a modernidade nos trouxe outras opções, também de não-precisão, como as RNAVs e as Localizer approaches. As RNAVs, que usam sinal de GPS, e as Localizer, que utilizam apenas a referência lateral de um ILS, também têm mínimos relativamente altos, e, portanto podem deixá-lo na mão nos dias de nevoeiro ou mesmo de tetos mais baixos. Claro, é bom lembrar: toda aproximação tem mínimos de teto e visibilidade: ou seja, mínimos verticais e horizontais.
Abaixo, reproduzo uma típica aproximação de não precisão – pela qual nutro especial carinho por ter sido a primeira aproximação IFR que fiz na vida. Vocês vão reparar que a carta não é DECEA (afinal o aeroporto fica nos Estados Unidos) nem Jeppesen. É uma carta feita pela FAA. A Jeppesen, cujas cartas são usadas mundo afora, tem justamente este mérito: o de padronizar as cartas feitas por muitos países diferentes.
Mas vamos pelo que toda carta tem em comum: cabeçalho, plano e perfil. No cabeçalho, temos vários dados importantes, a começar por coisas básicas como a localidade (no caso DeLand, KDED) até o final approach courses e frequências necessárias. Vamos brifá-la?
Bom, estamos chegando do norte, na proa do VOR de Ormond Beach, e pretendemos pousar na pista 23 de DeLand. Estamos voando acima da camada no nosso Cessna 172, a 5500 pés. Mas temos uma camada entre 700 e 2mil pés encobrindo toda a região central da Florida. Chamamos o controle e pedimos um “local IFR clearence”. Como nos EUA é possível voar VFR sem ver o chão, desde que se tenha um horizonte, viemos até aqui num plano VFR. Mas constatando, ao ouvir o AWOS na frequência 119.57, que o teto sobre DeLand é de 700 pés, com 4 milhas de visibilidade (acima, portanto, dos mínimos de 500 pés e 1 milha terrestre de visibilidade, previstos para a categoria A na carta), resolvemos tentar uma approach VOR na pista 23. Somos autorizados a descer na proa do VOR de Ormond (112.6) para 1600 pés. Pouco antes de atingirmos o auxílio, Daytona Approach (125.35) nos dá a proa 180, com a qual interceptamos o final approach course sobre a radial 212 do VOR. Seguimos a 1600 pés até estarmos a 11.8NM de Ormond, sobre o fixo DONGS. Chegando nele, descemos a 700 pés por minuto até nossa MDA de 540 pés. Nivelamos a 540 pés e começamos a procurar pela pista, que deve surgir ligeiramente à nossa esquerda, segundo o diagrama. Se atingirmos 16.5 milhas de Ormond sem ver a pista, arremetemos, subindo para 2000 com curva à direita, reaproando o VOR. Final feliz, vemos a pista algumas milhas antes e pousamos. Muito bem, essa foi uma aproximação de não-precisão. Não tínhamos rampa e só contávamos com a radial de um VOR.
Agora, vamos dar um exemplo de uma aproximação de precisão. Lá vamos nós de novo pra DeLand. Mas desta vez, a meteorologia enrolou: temos tetos de 300 pés, com visibilidade de apenas 1 milha terrestre. Ou seja, DeLand está “fechado”, abaixo dos mínimos, e teremos que alternar. A melhor opção? Daytona Beach International, a apenas 15 milhas de DeLand.
Os mínimos para o ILS da pista 7L de Daytona são bem mais baixos: 200 pés com 3/4 de milha de visibilidade: um típico ILS categoria I. O ILS, ou Instrument Landing System, é uma tecnologia antiga mas genial, que combina dois elementos: o Localizer e o GlideSlope. O Localizer oferece uma guia lateral, e o GlideSlope, uma guia vertical. Ambos equipamentos estão instalados no aeroporto, o Localizer ao final da cabeceira oposta e o GlideSlope na lateral da pista, próximo à marca de mil. Os sinais de rádio por eles emitidos são interpretados pelos instrumentos a bordo de maneira a oferecer tanto um eixo quanto uma rampa, e por isso têm mínimos tão baixos. Na verdade, os ILS mais sofisticados – categoria IIIC – chegam a permitir pousos com zero de visibilidade e teto. Uma diferença básica ao efetuar uma aproximação ILS é que, ao invés de uma MDA, ela tem uma DA – decision altitude. Se antes você descia até a MDA e ficava voando nivelado até o MaP (missed approach point), no qual você arremeteria se não visse a pista, com uma rampa eletrônica a coisa muda. Se você não vir a pista, arremete imediatamente ao chegar à DA. Note que se por acaso o GlideSlope estiver inoperante, você pode realizar uma aproximação usando apenas o Localizer, mas aí ela vira não-precisão, com mínimos bem mais altos – o que sequer serviria pra situação hipotética do nosso artigo.
Só que você há de convir que instalar e manter um sistema desses é algo bastante caro, que exige investimentos altos por conta dos administradores do aeródromo, limitando portanto o número de localidades onde esta tecnologia seja viável economicamente – deixando de fora lugares como a pequena DeLand, com 30 mil habitantes. E é aí que entra a genialidade do “ILS pra chamar de seu”.
Primeiro vieram os satélites e a navegação de área – RNAV – tornou-se grandemente difundida. Com o tempo, tornou-se mais precisa, chegando, no modo de aproximação, à margem de 0.3NM, ou 536 metros. Já é muito bom, melhor que muita aproximação VOR e NDB por aí, além de não depender de rádio-auxílios, mas ainda tem mínimos altos. E é aí que entra o WAAS: wide area augmentation system. É uma tecnologia americana, mas com similares europeus e asiáticos, em que uma rede de 25 estações em terra (WRS) calibra e corrige o sinal dos satélites de GPS. Essa correção é reunida em 2 estações principais (WMS) e enviada para um satélite em órbita geoestacionária, que transmite o sinal corrigido para todos os receptores de GPS sob sua cobertura. E a 35 mil quilômetros de altura, ele cobre o país todo, claro. O WAAS é extremamente confiável, e a rara ausência da sua eficácia pode ser prevista e avisada em NOTAMs e pelo ATIS.
Isso tudo permite a existência de uma rampa eletrônica. O clássico LNAV/VNAV já dispunha de uma, mas usando o altímetro (Baro-VNAV). A ideia é que o WAAS permita ao VNAV ter uma precisão maior e sem erros causados por variações de temperatura e pressão. Para a ICAO, ainda não dá pra chamar de “aproximação de precisão”, mas o fato, é que um novo procedimento, chamado LPV, com precisão lateral de 40 metros e vertical de 35 metros, tem mínimos similares a um ILS Categoria I.
Uma LPV – localizer performance with vertical guidance – tem a vantagem imensa de poder ser aplicada a praticamente qualquer pista, e é claro, sem os custos pesados de um ILS. Então, vamos voltar meia hora no tempo. Estamos em aproximação para DeLand, a simpática cidadezinha na Florida onde aprendi a voar. Temos à nossa disposição um belo Piper Archer III, que embora ainda seja equipado com os clássicos reloginhos, traz um Garmin G530 no painel.
Pegamos nosso bloco de approach plates da FAA e abrimos na página da RNAV 23 de DeLand. É nosso dia de sorte: com 300 pés de teto e 1 milha de visibilidade, estamos dentro dos mínimos para uma LPV na pista 23 de DeLand. Com DA de 374 pés, apenas 296 pés acima do solo, ela não é da LPVs mais precisas, mas já é o suficiente para vermos a pista e não precisarmos alternar.
Hoje em dia, quase 2 mil pistas nos EUA contam com a tecnologia LPV, abrindo uma imensa lista de possibilidades para os operadores e tirando do isolamento muitos aeródromos que antes dispunham apenas de aproximações menos precisas ou nem isso. Há LPVs com mínimos inferiores a 250 pés, e no futuro, talvez o ILS deixe de existir, ou pelo menos perca o sentido em certas localidades. Eu mesmo tive o prazer de fazer minha primeira LPV approach na pista 30 de Stuart, Florida, ano passado, e é mágico ver o instrumento comportar-se como se você estivesse fazendo um ILS num lugar se nenhum rádio-auxílio em terra. O futuro promete, e estaremos lá para voá-lo.