A trajetória para o voo solo

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A vontade de ser piloto de avião é algo que me acompanha desde tenra idade. Lembro-me de que quando garoto juntei um calhamaço de papel para projetar o meu próprio avião, chegando até a comprar uns tubos de metal no ferro-velho para realizar a empreitada. Eu planejava que a decolagem seria no quintal de minha casa, em um descampado de cerca de 30 metros (certamente iria motorizar meu pequeno avião com um motor General Eletric GE90, para conseguir tal desempenho!). Meu avô – que havia sido piloto privado quando jovem – embarcava nesse meu delírio infantil, planejando e dando palpites no projeto.

Meu sonho obviamente nunca se concretizou, mas a vontade de ser piloto, essa sim nunca saiu de mim. Então, com 29 anos de idade, resolvi que essa era uma realização pela qual valia a pena lutar.

No início deste ano comecei a pesquisar as escolas de aviação relativamente próximas a mim, inclusive para decidir qual curso faria. As opções: Piloto Privado ou Piloto de Recreio.

Ser piloto privado levaria 40 horas de instrução prática e me permitiria pilotar aviões monomotores homologados, sendo que a burocracia para a obtenção de tal licença é significativa, sobretudo no pertinente ao exame médico, que deve ser feitos em locais específicos.

Já ser piloto de recreio levaria 30 horas e eu poderia atuar como piloto em comando de ultraleves básicos e avançados. Esta licença possui um processo menos burocrático para sua obtenção, o exame médico, p. ex., é feito com qualquer médico credenciado à Associação Brasileira de Ultraleves.

Optei por fazer o curso de Piloto de Recreio, primeiramente pelo custo do curso (cerca de R$7.500,00, enquanto o brevê de PP não sai por menos de R$ 14.000,00) e em segundo lugar porque é crível a uma pessoa normal (entenda-se, de classe média) possuir seu próprio ultraleve, enquanto uma aeronave homologada possui custos obscenos de aquisição e manutenção. Então, para que ser PP se não poderia ter/pilotar um avião homologado?

Decidido o curso, escolhi a escola que me parecia ter um melhor custo-benefício, mas que dentre os contras tinha a sua localização (Belo Horizonte). Como eu moro no Rio de Janeiro, bolei um plano audacioso: iria tirar duas semanas de férias no trabalho e voar duas horas por dia (uma pela manhã e outra no final da tarde, com aulas teóricas neste intervalo), com vistas a fazer o máximo de horas no período.

A escola foi super solícita à minha proposta mas me alertou que voar tanto assim em um curto período de tempo poderia ser estafante e que era para eu avisar se em qualquer momento me sentisse sobrecarregado. Topei na hora, crendo que não poderia ser tão difícil assim, afinal eu já era aeromodelista de longa data e piloto assíduo do FSX :).

Com o devido salvo-conduto concedido pela esposa, rumei à BH. O primeiro voo do dia, chamado voo de apresentação, estava marcado para as 16h. Cheguei um pouco antes disso no Aeroporto Carlos Prates, me dirigi à sede da escola e fui familiarizando com o ambiente.

Me apresentaram ao instrutor com quem eu iria realizar o 1º voo, Leandro, que já devia ter umas 1.000 horas de voo no Bravo 700. Chegando na aeronave, ele me mostrou como fazia a inspeção externa, drenos de combustível, etc, e fomos voar.

Motor acionado, ele permitiu que eu fizesse o taxi para já ir “sentindo o avião”. Meu Deus (!), como era difícil manter aquele “troço” em linha reta! Precisamos literalmente ensinar nosso cérebro a ter comando direcional de alguma coisa com os pés, acostumando-se ainda com os pedais: a parte inferior comanda o leme/trem do nariz e a parte superior comanda os freios diferenciais (pedal esquerdo, freia a roda esquerda, pedal direito a roda direita).

Após o taxi em ziguezague, alinhamos com a pista na cabeceira 09 e decolamos. O dia estava muito turbulento, o avião pulava igual a touro em dia de rodeio e eu achava que não ia conseguir pilotá-lo nunca. Ao final daquele voo, fiquei com um pouco de dúvida quanto ao sucesso de minha empreitada.

Mas os dias foram passando, a instrução se aprimorando e, “como mágica”, o nosso cérebro vai absorvendo e processando toda aquela enxurrada de informações e sensações, para te transformar em um piloto.

Neste ponto descobri como o chamado “voo mental” é importante! Eu não estava satisfeito com os meus pousos, achava que estava pecando no momento correto de se quebrar o planeio e arredondar para o toque. Ora segurava o avião muito alto, ora muito baixo, sempre resultando em um toque mais duro (vulgo catapro). Então, por uma noite pousei várias vezes o avião, literalmente pilotando em pensamento e, surpreendentemente, no dia seguinte tive um resultado bem melhor.

Voei as duas semanas de forma incessante e fiquei absolutamente exausto. Parecia que eu corria uma maratona por dia. Mas dormia cedo e procurava me alimentar bem, para dar conta do recado.

No meu último dia agendado de voo – um sábado – eu desconfiava que seria o dia do tão esperado voo solo, pois no dia anterior o instrutor Francys já havia me maltratado com o treinamento de panes no circuito de tráfego.

Chegando no aeroclube, o Leandro disse que voaria comigo para ver se eu estava bom mesmo. Decolamos e foi um festival de panes (simuladas, né?): pane na decolagem com pouso em frente, pane na cabeceira oposta após a decolagem com subsequente curva de 180º para pouso com vento de cauda, pane na perna do vento… enfim, aquele avião deveria mesmo estar uma porcaria, de tanta pane que estava dando! Rsrs

Após uma dessas panes, depois do toque o instrutor não me deixou arremeter, mandou livrar a pista para que fossemos novamente à cabeceira para treinar uma decolagem curta. Assim fiz, mas quando passamos pelo pátio do aeroclube ele mandou encostar o avião e disse: –Você já está pronto para voar sozinho, comando. Preste atenção com a diferença na performance do avião, vai subir mais fácil, mas também flutuará mais no pouso. Faça tudo com calma que eu estou te esperando por aqui.

Então ele fechou a porta e saiu.

Caramba, como é estranho estar sozinho no cockpit, pensei eu. Mas lá fui, nervoso como em toda a primeira vez. Para piorar, tinha um avião à minha frente no ponto de espera que ficou lá por horas (ou será que foram só alguns minutos, transformados em horas por meu nervosismo?), o que só me deixou mais apreensivo.

Após a decolagem desse avião, alinhei na pista e decolei. -$%$@, como o avião sobe, disse eu. 1000ft/min cravados no climb, e estamos em BH, com altura da pista de 3.050 pés.

A atenção a tudo, aos parâmetros de voo e motor, ao alinhamento com a pista, enfim, o cérebro fica ligado no 220v, fazendo um esforço hercúleo para não fazer nada errado.

É bem verdade que quando estamos voando não temos muito tempo para pensar que estamos sozinhos, pois tudo acontece muito rápido, em especial quando estamos no circuito de tráfego, em baixa altura, baixa velocidade, ocasião em que a atenção deve ser redobrada.

Os procedimentos no Bravo700 para realizar uma decolagem seguida de um pouso no circuito de tráfego são mais ou menos os seguintes: aos 300ft de altura recolhe-se o flap, desliga-se a luz de pouso e reduz-se o motor para 5.000 rpm (a potência de decolagem é cerca de 5.400rpm); logo em seguida, devemos constatar que a área está livre e iniciar uma curva para direita para ingresso na perna do vento da 09 (o Carlos Prates possui um procedimento de aproximação visual especial, por isso a curva para direita no circuito, já que o padrão é curva à esquerda); ao atingir a altitude do circuito de tráfego (3.600ft), nova redução do motor para 4.800rpm, o que se mantém até passar pelo través (lateral) da cabeceira em que se vai pousar (no meu caso, a 09), ocasião em que há nova redução da rpm para 4.000 giros; na perna base, reduz-se a velocidade para 70mph, baixa-se os flaps (dois dentes) e acende-se a luz de pouso. Na final cuida-se para não ultrapassar as 70mph (velocidade máxima estrutural dos flaps) e, na vertical da cabeceira, coloca-se o motor em marcha lenta, diminui-se a razão de descida (quebrar o planeio) e aguarda-se o toque do trem principal.

Uma brincadeira que volta e meia se faz no Carlos Prates é segurar o trem do nariz no ar o máximo de tempo possível. Alguns mais experientes até dosam o motor para correr pela pista “com o nariz empinado”. Fala-se por lá que a galera (do restaurante, cuja varanda tem vista pra pista) delira quando uma aeronave faz isso. :) Até tentei fazer isso após o pouso, mas o trem do nariz deve ter ficado no ar por uns 2 segundos…rsrs

Assim que livrei a pista e fui taxiando para o pátio, tudo passou como um filme em minha cabeça: o meu sonho de ser piloto, as duas últimas semanas de muito cansaço mas puro prazer (como é bom fazer o que gosta, não é?), e o que eu tinha acabado de realizar, o tão sonhado voo solo.

Após o corte do motor, os dois instrutores responsáveis por me passar tudo que sei hoje se aproximaram do avião com dois baldes na mão. Tomei um belo banho de água fria, simbolizando um momento muito especial para todos nós, que antes éramos alunos, hoje somos pilotos de avião.

Voar é indescritível. Mas voar comandando um avião, mesmo que pequenino, é algo ainda melhor, uma sensação que com palavras não consigo descrever.

O curso de piloto de recreio é uma alternativa acessível e viável para a maioria de nós, apaixonados pela aviação e que, ainda que o trabalho diário seja em terra firme, estamos com a mente sempre no ar. Eu recomendo!

Gabriel Albuquerque

Alexandre Sales
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