Tema da semana: QI & Relacionamentos – Parte II
Caros leitores do Canal Piloto, Oscar Lima Alpha!
Na semana passada, eu propus aos leitores da coluna que, quem escrevesse o melhor comentário aos três últimos artigos desta coluna neste ano, ganharia uma cópia autografada do meu livro, “Prática naTeoria – Aplicações da Teoria dos Jogos e da Evolução aos Negócios”. Este é o segundo artigo da série, então caprichem, que no terceiro só haverá um dia para postar os comentários válidos para a promoção! No artigo de hoje, antes de entrar no assunto proposto (“QI & Relacionamentos”), eu gostaria de falar de uma outra publicação minha, só que no formato de áudio-livro. Em 2008, a Universidade Falada publicou um áudio-livro de um texto de minha autoria, chamado “Teoria dos Jogos Aplicada aos Relacionamentos”. Para quem não gosta de ler, ou não tem muito tempo para isso, esse áudio-livro é bastante interessante: você pode ouvi-lo no som do carro, no iPod andando de metrô, etc. – e ele está disponível em CD e em arquivo mp3.
Mas seja qual for o meio de obter o arquivo (e existem outros menos recomendados, não vou ser ingênuo), o importante é que você o ouça com atenção, pois esta é a forma mais prática para você entender os fundamentos que estão por trás do texto desta coluna – além, é claro, de ler o segundo post do meu bloguinho sobre QI na aviação, que é focado no assunto deste artigo: este aqui.
Ok, passemos, então, à coluna propriamente dita. No primeiro artigo desta série, nós focamos a questão das indicações no mercado de trabalho aeronáutico e, no final, nós chegamos ao seguinte resumo sobre o QI para a aviação:
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Que ele é fundamental para o seu sucesso profissional como piloto, principalmente na aviação geral (táxi e executiva);
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Que, embora exista o “QI original”, é possível construir seu próprio QI (o “auto QI”), que é o mais comum, na prática;
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Que as razões de existir o QI são duas:
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Diminuir o risco do operador da aeronave, principalmente em relação aos investimentos em treinamento que ele precisa fazer nos pilotos; e
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Proporcionar a concessão de um favor a alguém que interesse ao operador da aeronave, retribuir um favor prestado anteriormente, ou acumular créditos para serem usados no futuro;
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Que quem tem mais chance de lhe fazer uma indicação positiva é um outro piloto, ou alguém do meio aeronáutico; e
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Que sua reputação na aviação será fundamental para que você obtenha indicações positivas no decorrer de sua carreira.
Isso é a essência do que você precisa saber sobre QI. Mas antes de passar para o tema dos relacionamentos, é preciso abordar um assunto intermediário: REPUTAÇÃO. Isto, meu caro (ou minha cara), deve ser sua preocupação desde o momento em que você pisar pela primeira vez num aeroclube, até o seu último dia de trabalho como piloto. Numa faculdade de Ciências Sociais, por exemplo, não vai ser um grande problema se seus colegas de classe souberem que você fuma um baseado nos finais de semana (a não ser que você vai ter que dividi-lo com eles…). Se você estiver cursando Publicidade & Propaganda, não vai pegar mal se você aparecer com dreadlocks, piercings e tatuagens, ou fantasiada de Lady Gaga nas aulas. Numa faculdade tradicional, colar faz parte da cultura acadêmica; andar desleixado é comum até entre parte dos professores; ter uma postura, digamos, “muderna”, pode ser não só aceitável, como até muito recomendável. Mas num aeroclube ou escola de aviação, usar drogas ou ter um visual esquisito não será benéfico para você, fique certo disso; colar nas provas não é bem visto, e chinelo de dedo não é charmoso. (A propósito, sobre o assunto das drogas, é bom dar uma lida neste post aqui, sobre a regulamentação dos testes anti-drogas, recém instituída pela ANAC – e fiquem sabendo que as companhias aplicam testes que detectam o consumo de qualquer entorpecente por um período superior a três meses).
O meio aeronáutico é conservador, quase militar, e se você adquirir uma reputação errada, dificilmente terá sucesso como piloto. Seja ético, aja com correção em tudo que fizer no aeroclube/escola ou nos hangares da vida. A pontualidade é um item que você tem que se preocupar muito na aviação – afinal de contas, como é que você vai querer ser indicado, se você é um sujeito que pode chegar atrasado para um voo? Imagine a situação da pessoa que te indicou, perante o dono do avião reclamando: “E aquele piloto que você me mandou, hein? Você acredita que, por causa dele, eu cheguei atrasado numa reunião?” Não dá, né? E não vou nem entrar na questão da humildade, que já falamos muito disso aqui (quem não leu este artigo, aproveite e leia). Não se vista de maneira extravagante, nem nas aulas teóricas, de preferência – vide este post, em que eu falo sobre etiqueta aeronáutica elementar. Enfim, passe a mensagem de que você é uma pessoa conservadora, equilibrada, correta, careta – e, principalmente: CONFIÁVEL e COOPERATIVA. Isso vai ser muito bom para você na aviação, acredite.
O que precisa ficar bem claro é que, por mais legal que você seja, por mais que as pessoas gostem de você, por mais que todos riam das suas piadas, por mais que te convidem para festas e baladas, ninguém vai te indicar para um emprego de piloto se esta indicação colocar em risco quem a fizer. E as pessoas avaliam este risco de acordo com a sua reputação: se ela for a de um sujeito irresponsável, imaturo, preguiçoso, desleixado ou “doidão”, você não vai conseguir se estabelecer como piloto, amigo(a)! A coisa é séria! Reputação é um fator que mais exclui do que inclui: mesmo ela sendo positiva, isso não garante que você obterá boas indicações; mas se ela for ruim, você certamente não será indicado para nada – por isto, a reputação é classificada como sendo um “fator higiênico” nos meios acadêmicos: se você tiver uma ótima higiene, não há garantias de que você permanecerá saudável; mas se sua higiene for ruim, você certamente adoecerá. Estando isto claro, prossigamos.
A partir de agora, nosso foco serão os relacionamentos, ou seja: como a pessoa deve se comportar para construir vínculos sociais que lhe sejam úteis na sua vida profissional. Isso vale tanto para os relacionamentos com quem pode lhe fazer indicações, quanto com os próprios empregadores (potenciais ou reais), assim como os demais integrantes de seu universo profissional. Em todos esses casos, os relacionamentos realmente eficientes serão aqueles baseados no que eu chamo de “altruísmo recíproco” no meu livro – e eu não vou entrar no mérito da teoria que dá sustentação ao altruísmo recíproco neste artigo, embora isto seja muito importante (para quem tiver interesse, a leitura/audição recomendada acima existe justamente para isso). Na verdade, o que interessa mesmo para nós, pilotos, é entender como construir relacionamentos eficientes, e é disso que trataremos aqui. (O maior prejuízo de não explicar a teoria é que as recomendações parecerão dogmáticas, que é uma coisa que me incomoda um pouco, mas para quem não se importar muito com isso, tudo bem).
A palavra-chave para entender o altruísmo recíproco é a COOPERAÇÃO, mas este é um termo capcioso. Quando se fala em cooperação, as pessoas logo pensam em dar as mãos e sair alegremente saltitando pelos campos, em busca de um mundo mais fraterno, e blá blá blá. E escrever sobre relacionamentos sempre passa a impressão de um texto de auto-ajuda (do tipo “fazer amigos e influenciar pessoas”), ou então um artigo das revistas Nova/Marie Claire; sem contar que todo mundo acha que é craque no assunto, afinal de contas “eu tenho tantos amigos, me dou bem com todo mundo, e não tenho nenhuma dificuldade em fazer novas amizades”. Só que nós vamos tratar dos relacionamentos como “jogos”, em que os “jogadores” são agentes econômicos racionais tentando maximizar o resultado econômico. (Bem pouco poético, né?). E para atingir seus objetivos, estes jogadores podem cooperar ou “trair” (aqui entendido como “não cooperar”) – ou, mais frequentemente, cooperarem até um certo ponto, e sob determinadas condições. Neste “jogo”, seus objetivos são: 1)Obter a cooperação dos outros; e 2)Evitar ser “traído” (não ter sua cooperação retribuída). Mas como fazer isso?
Em primeiro lugar, vamos explorar a questão dos “jogos repetidos”. É possível demonstrar isso matematicamente pela teoria dos jogos (o que não iremos fazer neste texto, pode ficar sossegado): quanto mais interações houver entre os agentes envolvidos num relacionamento, maiores as chances de que haja cooperação entre os jogadores. Isso quer dizer basicamente o seguinte: você não vai conseguir obter uma indicação positiva de alguém que acabou de conhecer. Sabe aquele piloto veterano, que conhece todo mundo no aeroporto, com quem você ficou conversando no último churrasco no aeroclube? Aquele sujeito seria um ótimo QI para você, não? Então, só que esse cara não vai te indicar para um emprego na aviação na semana que vem; mas se você conseguisse ficar amigo dele, e mantivesse um relacionamento cooperativo durante algum tempo, pode ser que ele viesse a lhe indicar para uma posição de piloto. O problema é que vocês vivem em mundos diferentes – você no aeroclube, ele no hangar (ou voando) –, e na prática não há muitas chances de vocês estreitarem os laços. Isso significa, meu caro estudante de aviação, que não adianta querer forçar uma barra com quem não é do seu meio: preocupe-se com os relacionamentos possíveis! O seu instrutor de hoje, amanhã estará pilotando um Seneca, e ele pode te chamar para ser seu copila; o seu colega de classe pode ser sobrinho do dono de um Corisco, e isso pode lhe propiciar umas horinhas na CIV num futuro próximo. Ou seja: concentre-se nos relacionamentos que têm condições de ocorrer de forma continuada, não nas oportunidades esporádicas de conhecer figuras importantes da aviação. Lógico que, se houver uma oportunidade para manter um relacionamento próximo com um piloto veterano, aproveite – mas elas não são freqüentes para a maioria das pessoas.
Um relacionamento de altruísmo recíproco pressupõe que eu te ajude hoje e, amanhã, você me retribui o favor, me ajudando. Só que, se os favores prestados e recebidos tiverem peso idêntico para nós, a gente simplesmente trocou seis por meia-dúzia (é uma “relação de soma zero”, no jargão da teoria dos jogos). Por exemplo: supondo que eu e você sejamos pessoas “comuns” (não somos borracheiros), imagine que eu passo por você hoje, e vejo que seu pneu está furado e te ajudo a trocá-lo; sendo que, amanhã, sou eu que estou com um pneu furado, e você me ajuda a trocá-lo. Legal, só que a gente ficou na mesma: cada um de nós “trocou meio pneu” (teve a metade do trabalho de trocar um pneu inteiro) em duas oportunidades; ou seja: nós continuamos trocando um pneu cada um. Por isso, para que um relacionamento de altruísmo recíproco seja verdadeiramente eficiente, é preciso haver alguma “assimetria nos custos e benefícios dos favores prestados e recebidos”. O termo é meio complexo, mas é fácil de entender. Veja o exemplo abaixo.
Vamos supor que eu, o Zé, seja um borracheiro, e ande com todos os apetrechos de borracharia na caçamba da minha caminhonete; enquanto que você, o Tião, seja um mecânico, que também ande com todas as suas ferramentas no seu carro, para uma emergência. Num belo dia, eu (o Zé, borracheiro) estou passando pela rua, e vejo você (o Tião, mecânico), com um pneu furado. Eu paro e te ajudo a trocar o pneu, o que faço com um mínimo esforço, já que tenho um macaco hidráulico comigo, e possuo muita prática com esse tipo de coisa. Passado algum tempo, sou eu que estou com problemas, agora no motor do meu carro, que me deixou na mão; e nesse momento passa você, Tião mecânico, que me ajuda a colocar o carro para andar, pois era só uma sujeira no carburador, coisa que você resolveu em minutos com sua experiência e equipamentos. Deu para perceber como os favores prestados custaram muito pouco para quem os prestou, mas tiveram um enorme valor para quem os recebeu? É isso o que se chama de “soma positiva” em teoria dos jogos, que só foi possível pela assimetria que havia entre eu (borracheiro) e você (mecânico).
Ok, mas o que isso tem a ver com os relacionamentos de um piloto e, principalmente, com o QI? Bem, vamos começar a explicação com uma obviedade: as pessoas tendem a ajudar mais quem as ajuda de maneira significativa. Se isso é verdade, e também é um fato que as pessoas do seu convívio na aviação poderão lhe fazer indicações profissionais importantes em algum momento de suas vidas; quanto mais benefício você proporcionar para elas, maiores as chances de que você se beneficie de indicações positivas no decorrer de sua carreira, concorda? Ok, mas que benefício é esse que você pode proporcionar? O ideal é que seja algo que lhe custe pouco, mas que tenha um grande valor para quem recebe. Se você tem um tio dono de uma gráfica rápida, por exemplo, você pode fazer um esquema de oferecer cartas REA ou WAC a preço de custo para os seus amigos do aeroclube. Se você é craque em navegação, por que não ajudar seus amigos com dificuldades nos exercícios medonhos que caem na banca da ANAC? Se você ajudar seus amigos com esses pequenos favores que não lhe custarão quase nada, mas que podem ser decisivos na vida deles, sua reputação cooperativa, e a predisposição do outros para lhe ajudar num momento em que você precisar aumentarão absurdamente. E, num momento em que um desses amigos estiver na posição de indicar alguém para um emprego, você certamente será um sujeito muito mais lembrado que aquele cara legal que contava piadas e imitava o Sílvio Santos (mas não ajudava ninguém).
Ocorre que o altruísmo recíproco possui alguns riscos também. O primeiro é de que você seja interpretado como um oportunista frio, um “mercador de favores”. Embora exista uma racionalidade por trás deste mecanismo, as pessoas se relacionam umas com as outras por meio de emoções e sentimentos, e não há nada que as pessoas mais odeiem do que serem manipuladas. E, de fato, não se trata de manipulação: o que eu estou sugerindo é que você adote um comportamento cooperativo na sua essência, não que você se torne um sujeito mesquinho, que só ajuda aqueles que percebe haver potencial de retribuição imediata. Na verdade, quanto mais você ajudar pessoas sem possibilidade de lhe retribuir, melhor para sua reputação cooperativa! (Por que você acha que o Bill Gates doa bilhões de dólares para a caridade? Por que ele é bonzinho?). E o outro risco é o da trapaça. Os “Gérsons” da vida existem também na aviação – acho que a maioria aqui nem vai saber do que se trata: nos anos 1980, o Gérson, ex-atacante da seleção de 1970, protagonizou um comercial dos cigarros Vila Rica, em que ele afirmava que “é preciso levar vantagem em tudo, cerrrto?”, o que o estigmatizou como oportunista, e criou a popular “Lei de Gerson”. Sempre vai haver aquele sujeito que, assim que perceber que você é um cara cooperativo, disposto a ajudar, vai se aproximar com o intuito de levar vantagens em cima de você. Por isso, você tem que ser hábil o bastante para saber identificar esse tipo de comportamento, evitando-o sempre que possível. E vá prestando seus favores aos poucos, e vendo como a pessoa que os recebe se comporta, não chegue escancarando sua “bolsa de bondades” de uma vez.
Bem, meus caros (e caras), estou estourando o limite de tamanho de texto a que me propus, e é preciso encerrar. Na semana que vem, retomamos este assunto, para encerrá-lo com um outro mecanismo cooperativo importante para se obter sucesso na aviação. De qualquer maneira, o assunto é muito mais extenso do que seria possível explicar aqui – e é por isso que eu estou recomendando tanto a leitura/audição do meu (áudio)livro, não é por que eu quero faturar em direitos autorais (se vocês soubessem o quanto eu ganho das editoras…). Mandem brasa nos comentários, aproveitem a oportunidade, não tenham medo de falar bobagem. Não é todo dia que surge a oportunidade de pensar e debater estes assuntos, então não deixe passar essa chance.
Um grande abraço a todos, e até a semana que vem – lembrando que minha coluna vai ser adiantada para o dia 20/12, conforme informado na semana passada.
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