Tema da semana: Simulador IFR
Caros leitores do Canal Piloto, Oscar Lima Alpha!
Nesta semana, vamos tratar de um tema muito importante para a formação aeronáutica: o simulador IFR – que não tem nada a ver com o simulador LOFT utilizado no curso de Jet Training, que falamos na semana passada. O simulador IFR é (mal) entendido como um mero mecanismo para abater horas de voo reais do treinamento IFR (no curso de PC), e às vezes confundido com os jogos para computador do tipo MS-Flight Simulator – quando, na verdade, é um instrumento indispensável para o aprendizado do voo IFR, tão importante quanto o voo real no avião. Neste post, iremos desfazer alguns mitos, e explicar corretamente como funciona o treinamento em simulador, para que ele serve, como a ANAC o encara, e como ele deveria ser, num mundo ideal. Então, vamos lá.
Existe uma lenda que corre nos subterrâneos dos aeroclubes que, certa vez, apareceu um sujeito com uma CIV toda preenchida com os “voos” feitos no MS-Flight Simulator, pedindo informações sobre como obter um brevê com sua “larga experiência aeronáutica”. Não sei até que ponto isto é verdade, mas o fato é que muita gente acha que “voar” no FS do micro de casa tem uma relevante importância em sua formação de piloto. Não tem, sinto informar aos simuleiros de plantão – mais para a frente, vamos explorar como o FS poderá ser utilizado de maneira inteligente na instrução IFR, mas vocês verão que sua importância é bem menor do que se imagina. Ocorre que essa história de ensinar IFR com FS “fez escola” – literalmente!!! – em muitos aeroclubes/escolas Brasil afora. Tanto que a ANAC precisou fazer uma séria intervenção na instrução em simuladores no final de 2010, para colocar um pouco de ordem na casa.
O que estava acontecendo era que os aeroclubes/escolas colocavam um microcomputador com FS no primeiro buraco desocupado que encontravam para dar instrução IFR, e lançavam na CIV do aluno aquela instrução como válida para o sujeito abater 20h de voo IFR em avião, o que é um absurdo completo. Ante este descalabro, a ANAC “desomologou” (cassou a homologação de) todo mundo, e editou novas regras referentes à instrução IFR em simulador. Infelizmente, eu estava no meio da minha instrução em simulador no Aeroclube de São Paulo nessa época, o que foi um baita de um transtorno, vide esse post aqui (na verdade, o ASP está sem simulador homologado até hoje!!!). Mas, enfim, depois dessa reforma, a situação formal dos simuladores IFR perante a ANAC ficou assim:
– Os simuladores para instrução IFR (agora chamados “ATDs-Aviation Training Devices” pela ANAC) foram divididos em duas categorias, com diferentes critérios para abatimento de horas de voo reais em instrução IFR para quem comprovar ter realizado pelo menos 25h de treinamento nestes dispositivos (vide site da ANAC):
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“BATDs-Basic Aviation Training Devices”: simuladores sem projeção de cenários, que abatem 10h de voo real em instrução IFR (o aluno precisará voar 30h no avião); e
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“AATDs-Advanced Aviation Training Devices”: simuladores com projeção de cenários, que abatem 20h de voo real em instrução IFR (o aluno precisará voar 20h no avião).
– Os simuladores homologados pela ANAC – portanto, cujo treinamento permite abater horas de voo de treinamento IFR – são, única e exclusivamente, os equipamentos listados nesta planilha da ANAC.
– Para quem realizou treinamento no exterior, é necessário validar a qualificação do equipamento junto à ANAC previamente, seguindo este roteiro aqui (é aquela coisa simples, como tudo que a ANAC pede…).
Então, em termos estritamente legais, a regra é simples: 25h de AATD abatem 20h de voo IFR; 25h de BATD abatem 10h de voo IFR; e quem utilizar simulador não homologado ou simplesmente não utilizar simulador algum tem que voar 40h no avião. Pronto, ponto final. Só que esta regra da ANAC, embora tenha colocado ordem no caos que estava a instrução em simulador IFR no Brasil, está longe de ser a mais adequada para que alguém tenha uma boa formação em IFR – que é, afinal de contas, o objetivo final da instrução IFR. Na verdade, essa divisão entre AATD e BATD, embora possa parecer possuir uma lógica inatacável, não faz o menor sentido em termos de instrução IFR. Simplesmente, não existe diferença entre haver ou não haver cenários projetados, isso é totalmente irrelevante para o aprendizado do IFR. Na verdade, o cenário só é usado para realizar a parte visual do voo IFR – ou seja: quando, no final de um procedimento ILS, por exemplo, o piloto tem que decidir se arremete ou pousa; e se estiver visualizando a pista, ele completa o pouso. Mas se o aluno nunca estiver visual nos pousos – e, portanto, tem que arremeter sempre que atingir a DA/DH (“altitude de decisão”) –, o treinamento IFR em si estará 100% garantido, pois a partir do momento em que ele estiver visual… Ele está visual, oras, não precisará mais do auxílio dos instrumentos! O que interessa é o piloto saber que está na DA/DH, daí para a frente, completar o pouso ou arremeter é de importância secundária para a instrução (e, se querem mesmo saber, arremeter é melhor para a instrução do que pousar, pois isso exige que o aluno pratique o procedimento de aproximação perdida previsto na carta – logo, mais um argumento a favor do simulador BATD). Percebem como não faz sentido dizer que um simulador com cenários é melhor que um simulador sem cenários para a instrução IFR?
Outra coisa que eu entendo estar errada na instrução IFR em simulador é a exigência de apenas 25h de treinamento. Um bom curso de simulador IFR leva, no mínimo, 45h para que o aluno esteja de fato proficiente em tudo o que é necessário para voar IFR – incluindo os procedimentos RNAV, o voo em STAR, os procedimentos com arco DME, e principalmente as reações às panes nos auxílios. Com 25h, é possível apenas conhecer os procedimentos IFR, e olhe lá, não dá para treinar tudo o que é necessário até ficar proficiente de verdade. Na minha modestíssima opinião, um programa completo de instrução em simulador IFR deveria incluir: a)45h básicas em painel convencional (NDB, VOR, DME e ILS analógicos) sem o uso de piloto automático; b)10h em painel glass cockpit, com P/A opcional; e c)5h em simulador de multimotor; total: 60h de simulador. E, para manter o IFR válido para quem voa menos de 10h/mês de IFR real, no mínimo 5h/mês de simulador. Exagero? Experimente fazer um pouso ILS nos mínimos meteorológicos exigidos pela carta, para você ver como é preciso estar muito afiado no IFR para voar com segurança quando você só sai das nuvens com a pista na tua cara.
Sobre a questão dos diferentes tipos de equipamentos atualmente disponíveis no mercado (MNTE ou MLTE, analógico ou digital, e sem ou com piloto automático), utilizados na instrução IFR em simulador, algumas dicas importantes:
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Somente utilize simuladores do tipo glass cockpit e/ou piloto automático quando você estiver 100% proficiente no manuseio de simuladores analógicos sem P/A. Se não, seria como aprender a dirigir com câmbio automático, e depois partir para o manual.
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De qualquer maneira, é bom ter experiência em simulador do tipo glass cockpit no seu treinamento, inclusive com o uso simultâneo dos instrumentos convencionais (NDB, VOR, DME e ILS, digitais no caso) e do GNSS.
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Não vale a pena pagar mais caro para utilizar um simulador MLTE em todo o treinamento, mas é bom fazer algumas horas (3-5h está bom) nesta modalidade antes de começar os voos MLTE reais.
Agora, uma informação que talvez choque muitos de vocês. Para aprender os fundamentos do voo IFR, não faz muita diferença qual simulador você estará usando. Além da sua capacidade e dedicação, o que importa mesmo é a qualidade do instrutor, não do simulador. Na minha instrução, eu utilizei os moderníssimos simuladores AATD da EJ, e os ultrapassados simuladores não-homologados do Aeroclube de São Paulo. Onde aprendi mais? No ASP, sem dúvida alguma, onde a instrução é dada majoritariamente por ex-controladores de voo com 30 anos de experiência na instrução IFR – e isso faz uma diferença absurda, pode acreditar. A propósito, isso está em desacordo com as regras da ANAC, que exigem que os instrutores dos simuladores IFR homologados sejam INVAs, mas o fato é que os velhinhos do ASP são muito melhores que a moçada da EJ, não tem comparação. (Antes que me crucifiquem, dois esclarecimentos: 1)Não estou dizendo que a instrução em simulador da EJ é deficiente, somente afirmando que no ASP é melhor; e 2)Não é necessário que um instrutor seja ex-controlador para ser bom, eu sei que existem ótimos instrutores de simulador ex-pilotos ou pilotos da ativa Brasil a fora).
Bem, nós já falamos dos equipamentos, dos instrutores, das regras da ANAC, da “desomologação” de 2010, e até de uma proposta de treinamento ideal para os simuladores IFR. Faltou falar sobre como obter um bom aproveitamento no aprendizado do voo IFR utilizando os simuladores. Então, vamos lá.
Primeiro: quando realizar o treinamento. A hora ideal para começar as sessões de simulador IFR é mais ou menos um mês antes de começarem os voos de treinamento IFR no avião – e, evidentemente, após a instrução teórica de IFR do curso de PC. Assim, você sempre estará um pouco à frente com o simulador (em relação aos voos reais), mas o aprendizado do simulador ainda estará fresco na sua cabeça na hora de voar.
Segundo: quanto treinar. O ideal é não fazer mais que uma sessão de simulador por dia, e no máximo umas 3 ou 4 sessões por semana. Desta forma, você terá tempo e disponibilidade mental para estudar as sessões, e refazê-las no MS-Flight Simulator de casa (próximo tópico), eventualmente no avião (é interessante repetir os procedimentos do simulador no avião sempre que possível).
Terceiro: como utilizar o MS-Flight Simulator. Para você, simuleiro, que ficou ofendido quando eu disse que o FS é irrelevante, agora chegou a sua redenção. Se você refizer as sessões realizadas no simulador do aeroclube/escola em casa, no seu micro, seu rendimento no aprendizado do IFR deverá melhorar bastante. Na verdade, é esta a importância do FS: ser uma ferramenta para praticar as lições aprendidas no simulador “oficial” – ao contrário do que muita gente pensa, que o FS pode ser uma boa fonte primária de treinamento IFR, coisa que ele não é.
…E quanto custa isso tudo? No ASP, cerca de R$80/h, um pouco mais ou um pouco menos se você for ou não for sócio, e se pagar hora avulsa ou adquirir pacotes, e é possível pagar com cartão de crédito. Na EJ, quando eu fiz (início de 2011), estava R$110/h, e os pacotes podiam ser parcelados no cartão (o número de parcelas vai depender do total da compra). Isso significa que seu gasto com simulador, no curso de PC-IFR, vai ficar entre R$3mil e R$7mil, dependendo de onde você treinar, e do número de horas utilizadas.
Uma outra possibilidade para os simuladores é a de utilizá-los como uma ferramenta para a prática da fonia em inglês. Como já disse na coluna anterior, eu fiz o curso de fonia em inglês do prof. Roberto, no Aeroclube de São Paulo e, depois disso, procuro fazer uma sessão por semana de simulador em inglês para praticar, simultaneamente, o IFR e o inglês aeronáutico. Vale demais a pena, só que eu desconheço algum outro lugar que ofereça essa possibilidade se não o ASP – então, infelizmente, essa é uma dica que só quem mora em São Paulo poderá aproveitar.
Agora, uma dica para finalizar o assunto: pratique bastante os procedimentos com arco DME no simulador. Estes tipos de procedimento são chatos e demorados, mas é bom você estar afiado neles porque: 1)realizá-los no avião sai caro, uma vez que demandam muito tempo; e, principalmente, 2)costuma ser uma manobra solicitada nos cheques de IFR (no meu cheque, pelo menos, foi).
Bem, pessoal, sobre simuladores IFR era isso o que eu tinha para falar. Como de hábito, estou às ordens para responder perguntas sobre este assunto aqui, na seção de comentários – ou sobre outros assuntos relativos à formação aeronáutica na página de perguntas & respostas do meu bloguinho.
Passemos, agora, para as respostas aos comentários da coluna da semana passada:
Começando pelo José Roberto Arcaro (“E o ‘Pé e mão’?? Como fica???”), o tipo de comentário típico do pessoal da “old school”. Olha, JR, aqui perto tem um salão que minha mulher freqüenta que faz pé e mão muito bem, tira as cutículas, passa esmalte, etc. Interessa? Bem, desculpe a piadinha infame, não resisti… Mas o fato é que o famoso “pé e mão” você pratica no Paulistinha do aeroclube, não tem nada a ver com os tais “penduricalhos” que eu apresentei. Eu entendi o que você quis dizer – que de nada vale essa frescurada toda de Jet Trainer, ICAO test, etc, se o piloto não souber fazer uma glissada num pouso, etc. É verdade, mas o pressuposto é que o piloto já seja proficiente no pé e mão quando for aprimorar suas habilidades em inglês, CRM, etc. Na aviação atual, um piloto só com pé e mão não vai longe, essa é que é a verdade.
O anônimo que pergunta se precisa do Jet Trainer para pilotar os ATRs da Trip e da Azul, é o seguinte. Meu caro, embora o ATR não seja um avião a jato (trata-se de um turbo-hélice), a Azul requer o Jet Trainer, sim (a Trip, não). Isso porque o curso de JT é muito mais sobre a coordenação de cabine (CRM) típica da aviação comercial, do que sobre a operação de aeronaves a jato. Daí a necessidade do JT, pelo ponto de vista da Azul, mesmo que seja para operar um avião turbo-hélice. Sacou?
O outro anônimo (ou seria o mesmo?) que pergunta se o MLTE está sendo dispensado nas seleções das companhias aéreas, é o seguinte. Que eu saiba, a única companhia que andou contratando pilotos sem MLTE nas seleções recentes foi a Trip, mas mesmo assim em casos excepcionais, em que o candidato possuía muita experiência (+1000h). A regra geral das companhias é contratar só quem tem MLTE ou TIPO de avião multimotor, muito embora não haja necessidade formal do MLTE para pilotar um Boeing/Airbus/ATR etc. Pelo menos, é assim que a coisa está funcionando hoje em dia.
Ao Eduardo Prada, que pergunta se um currículo de “PC-IFR/ MLTE JT 300 h ICAO-5 e uma formação superior em letras/inglês” seria suficiente para conseguir uma vaga de copila na aviação geral, eu diria que, hoje, esta formação abre as portas não só para a executiva e o táxi aéreo, mas até para a aviação comercial, em alguns casos (Azul, Trip e Passaredo, principalmente). Mas não sei como a situação vai estar daqui a alguns anos, apesar das perspectivas otimistas.
Ao vitucastro, que quer fazer o JT nos EUA, eu diria que talvez não seja tão interessante assim tentar conciliar o JT com o aprendizado da língua inglesa nos EUA. Não sei quanto custa esse treinamento por lá (e nem se existe algo similar ao JT oferecido no Brasil), mas aqui está saindo por R$3mil e 5X no cartão (caso da EJ, onde é mais barato), não acredito ser uma grande vantagem fazê-lo nos EUA. Se for para treinar o inglês, acho mais negócio fazer um desses cursos de imersão, que várias escolas oferecem.
Ao Edson Alves, que não sabe se faz o curso de inglês em 4 ou 2 anos, é o seguinte. Existem cursos que ensinam inglês até em um ano, talvez em menos. Depende da carga horária, da capacidade dos professores, da metodologia – e, lógico, da tua dedicação a aptidão para aprender línguas estrangeiras. Portanto, não dá para te dar um conselho assim, de longe.
E ao Mateus, que está com medo do teste físico da EPCAr, eu recomendo entrar numa academia e levar os requisitos do edital para que o instrutor possa preparar um programa de treinamento que te permita ser aprovado, e pronto.
Ao restante do pessoal que se manifestou, mas não tem dúvidas específicas, meu agradecimento pelo incentivo e colaboração.
Um grande abraço a todos, e até a semana quem vem!
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