Avião de Verdade

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Um dos meus articulistas prediletos é Sam Weigel. Escrevendo há muito tempo para a prestigiosa Flying Magazine, Sam é aquele piloto que conseguiu unir o útil ao agradável, e ao contrário do ainda mais genial Les Abend, quase não fala da linha aérea, embora a frequente tanto ou mais que o colega. É que diferente do comandante de Boeing 777, o copiloto de MD80 está focado na aviação geral, sempre esteve. No longo caminho que os Estados Unidos costumavam reservar para quem ia da instrução aos reluzentes jatos de passageiros, Sam foi instrutor por muitos anos, depois voou taxi aéreo, turbohélice nas regionais, até chegar ao assento da direita do “cachorro louco”, em mais de uma década de carreira. Mas sempre teve paixão pela geral, e tão logo pôde, meteu-se na propriedade compartilhada de um monomotor com mais uma dúzia de amigos. Uma vez na linha aérea, comprou ele mesmo um monomotor para si. Sim, uma realidade bem diferente da nossa: por mais que seu Piper Pacer da década de 1960 não seja exatamente uma aeronave cara, para um copiloto de linha aérea no Brasil ter um avião, qualquer que seja, é preciso provavelmente abrir mão de casa, comida, carro e tudo o mais. Pouquíssimos são os casos, e mesmo os que conseguem, pagam um preço exorbitante por algo que não deveria ser um luxo, mas um hobby. De qualquer forma, essa não é a única maneira de usufruir da aviação geral por lá.

Nos Estados Unidos é bastante fácil, simples e barato alugar uma aeronave. Praticamente qualquer escola ou FBO aluga um, e há milhares deles. Eu mesmo já o fiz quando era comissário: passei uma semana com um belo Piper Archer de meio milhão de reais pela bagatela de 1000 dólares, no que foi o melhor voo que já fiz na vida – o link aqui para o artigo que publiquei no Canal Piloto a respeito. Mas, com o real extremamente desvalorizado – ao ponto de termos no Brasil hoje alguns dos menores salários do mundo – fica bem difícil repetir a façanha. E após um jejum de anos, resolvi fazer uma pequena extravagância financeira. Afinal, gastamos tanto com outras coisas que não gostaríamos, que convenci a mim mesmo de que merecia.

Um amigo meu de longa data, o Daniel D’Aquino, também é pilossário. Voa para Paris na galley e na proa das pontes na cabine de comando com a mesma desenvoltura. E claro, por confiar em sua competência e contente em dividir o voo com ele, resolvi pagar essa dívida que tinha comigo mesmo: um voo local, visual, no Cessna 152, na minha cidade natal. Sem tirar o valor de ter pousado aqui uma dúzia de vezes na direita do Boeing 737, voar sobre a Ilha de Santa Catarina com a graça e tranquilidade que só um Cessna 152 pode proporcionar, é uma experiência única. Tendo o Daniel como meu instrutor, revi os procedimentos, preenchi a notificação de voo, fiz a externa e em minutos estávamos eu e ele espremidos nos pequenos assentos do Cessninha na fria manhã catarinense. Embora eu tenha quase duas centenas de horas no Cessna 152, fazia anos que não entrava em um, e com 11°C lá fora, não consegui ligar o avião de primeira. Antes que eu estragasse o starter ou esvaísse a bateria, Daniel fez as honras para mim, e logo o som familiar da Lycoming tomou a cabine. Desacostumado que estou a voar VFR no Brasil, Daniel me deu as dicas do que pedir, e após um Boeing 737-800 livrar na taxiway Bravo, seguimos nós para a cabeceira da pista 21 do Aeroporto Internacional Hercílio Luz. Meu briefing enferrujadíssimo foi meio embaraçoso, e Daniel o consertou: não à toa ele era o piloto em comando ali. Alinhamos na pista, e acelerei. Seria minha primeira decolagem com menos de 44 mil libras de empuxo em anos. Daniel estava a postos, mas não fiz nada muito errado. O Cessninha, dócil como sempre, provou que voá-lo era como andar de bicicleta.

Seguindo os checklists da padronizadíssima VoeFloripa, completamos o circuito. No través da cabeceira, carb heat on, power to idle. Diferente do tráfego que eu estava acostumado, faríamos quase um engine failure. Estando nós confortavelmente no envelope, e com temperatura baixa e pressão alta, o Cessna queria voar e chegou tranquilamente na rampa ideal. Um pouco de motor e lá vinha eu para o meu primeiro pouso de Cessna 152 em quase três anos. Eu mesmo tinha dúvidas do que esperar, afinal aproximar-se a 130 nós num Boeing de 60 toneladas e a 70 nós no Cessna de 700 quilos são planetas diferentes. Ou não. E tão logo eu tirei motor – antes do que eu imaginava, por dica do Daniel – o nariz dançou, no que compensei, um pouco demais, no leme. Mas nada absurdo. Para conter a razão, levantei o nariz. Com o dobro da velocidade de stall – diferente dos 1.3 na Vref do Boeing – o avião todo veio junto, e tive que ceder de novo. Não alisei, mas também não catrapei. E o mais importante: embora estivesse pronto para intervir, Daniel não precisou tocar em nada. Aceleramos e fomos para outro circuito, dessa vez mais tranquilo.

Depois, a meu pedido, fomos até a Serra do Tabuleiro, já no continente, que se eleva quase 4 mil pés acima do nível do mar. A vista da Ilha de lá é tão ou mais impressionante que a do Cambirela visto de Florianópolis. Na volta, um sobrevoo a 2 mil pés sobre as pontes e a Beira-Mar Norte. Após uma longa espera próximo ao João Paulo – bairro onde morei quase minha infância toda – voltamos sobre a UFSC e o Saco dos Limões – onde nasci e onde moro hoje de novo. Já na final para a pista 21, um Airbus A320 alinhou na cabeceira 32. A torre pediu para que ele esperasse, afinal nós estávamos a cerca de 2 milhas do pouso. Conhecendo bem as agruras dos dois lados, sugeri ao Daniel que concordou. “Se a torre quiser, fazemos um três meia zero na presente para o colega decolar”. E lá se foi, agradecido, o jato que gastava parado muito mais do que nós voando. Tão logo o Airbus vermelho e branco ganhou altura, viemos nós para o último pouso do dia. Saí do avião querendo mais: passaria o dia todo ali se pudesse. Mas infelizmente, como comentamos antes, no Brasil ainda é mais luxo que hobby.

Outro amigo, que está checando o PC na Treasure Coast, em Stuart, dias depois, perguntou: “Como foi voar o Cessna após voar um avião de verdade?”, no que respondi sem pestanejar: “Sem FOQA nem flight director, o Cessninha é que é avião de verdade.”