Destino Hanoi – Por Enderson Rafael

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O Sol já se pôs há algumas horas no Golfo Pérsico, e o ar fresco do inverno do Oriente Médio sopra do Norte a 18 graus. E hora de decolar para o Oriente. Hoje surfaremos numa jet stream que nos levará numa média de 580 nós de ground speed, num voo que durará um par a menos de horas que a volta, tão grande a diferença que o vento nessa latitude faz durante o inverno.

A maior parte do tráfego decolará por volta das duas da manhã para a Ásia, numa fila indiana de centenas de quilômetros espaçada por dois a três minutos entre cada aeronave. Mas nós estamos com sorte, e nosso voo decola às nove da noite, e após sobrevoarmos o Irã, pouco mais de uma hora voando e já estamos sobre o Paquistão. As luzes da gigantesca cidade costeira de Karachi ficam para trás, e dez minutos antes de entrarmos no espaço aéreo indiano, chamamos o controle de Ahmedabad. Nagpur, e Kolkata serão os seguintes, na travessia de quase três horas sobre a congestionada Índia. Mas essa noite mais do que as chamadas insistentes no rádio, o que no chama a atenção é o céu noturno. Uma chuva de meteoros impressionante nos acompanha todo o voo, com alguns maiores e esparsos, outros menores, velozes mas acompanhados. Em um dado momento, três estrelas cadentes despencam do espaço o mesmo tempo; mais tarde, um enorme meteoro de brilho esverdeado surge baixo no horizonte ao Sul. Não é a primeira chuva de meteoros que presencio nesses anos todos voando, mas com certeza é a mais intensa.

Assim como acontecera no Paquistão e na Índia, também chamamos o controle de Dhaka, em Bangladesh, 10 minutos antes de entrar no seu espaço aéreo, obedecendo a regras locais. Depois de Dhaka, conectamos o sistema de data link com Yangon, pouco antes de entrarmos no espaço aéreo de Myanmar. Uma tênue faixa alaranjada surge no horizonte, anunciando um novo dia enquanto o Cruzeiro do Sul aparece à nossa direita. Quase lotados, com combustível extra suficiente para alternarmos Saigon, duas horas ao sul de Hanoi – vamos pousar pesados. Com 170 toneladas, estaremos apenas dois mil quilos abaixo do peso máximo de pouso do Boeing 787-8. A precaução extra dos despachantes em escolher um alternado distante se justifica pela previsão do tempo quando do planejamento do voo, na noite anterior. Um forte nevoeiro, com visibilidade de 500 metros, fazia com com que um ILS categoria dois fosse bastante provável na chegada ao Vietnam. Mas ao conseguirmos o mais recente reporte meteorológico sobre o misterioso Laos, o aeroporto internacional de Noi Bai (VVNB/HAN) confirma a tendência das últimas horas, e a temperatura dois graus acima do ponto de orvalho e o vento de oito nós não deixam o nevoeiro se formar. Com dezoito graus na nossa chegada, o teto é de confortáveis três mil pés, e fazemos boa parte da STAR HUVAN1G acima da camada, já sob um Sol forte. Assim como os incontáveis vales nas florestas abaixo percorridas por Ho Chi Min, Hanoi também está encoberta por uma camada baixa. Após um shortcut no meio da STAR, somos liberados para o ILS Z da pista 11L. A visibilidade está bem acima dos mínimos, mas medida em 2800 metros, é restrita o suficiente para que eu só veja as luzes do ALS – approach lights system – poucos segundos antes de ver a própria pista. Desconectado o piloto automático, agora é ficar atento as mudanças no vento para antecipar as mudanças de potência do auto throttle e manter o localizador e o glide slope cravados até o PAPIS – indicador de rampa visual ao lado da pista – estar bem visível na névoa matinal.

Com 3200 metros de pista, a ideia é usar full reverso para manter os sensíveis freios frios para o voo que sai uma hora e meia depois, e livrar a pista na taxiway Sierra Two. O avião, pesado, vem confidente para o solo: inicio o flare gradualmente a 40 pés e reparo que, pouco antes do toque na pista, o vento girou e tirou o nariz levemente do centro da pista. Com o pedal direito, trago gentilmente de volta, e o avião toca o solo vietnamita. Para poder fazer a curva de noventa graus, quase paro o avião, e ao chegarmos no través da Sierra Two, um Airbus A321 alinha na pista paralela à nossa. Com a visibilidade reduzida, toda atenção é necessária. O controle nos autoriza a cruzar a 11R, com o mando de “expedite”. Verifico a direita livre e aplico um pouco de potência até atingirmos cerca de 14 nós. Deixada a pista para trás, mais uma curva de noventa graus, mais freio para trazer o avião para uma velocidade condizente com a curva fechada. No longo táxi de duas milhas pela frente, ainda encontramos outro Airbus A321 sendo rebocado, o que me faz ter que frear outra vez: mesmo relativamente pesado, o 787 ganha velocidade facilmente mesmo com os motores em marcha lenta. Mais alguns minutos e estamos no portão do moderno terminal.

Em Hanoi são nove da manhã quando chego ao hotel, mas quatro horas à frente de casa, meu corpo de alguma forma sabe que passou a noite em claro.

Durmo quatro horas seguidas e forçadamente levanto com o despertador: quero ter sono para dormir à noite e tenho um compromisso importante: após uma carona na garupa da moto de um velho amigo da época de comissário de voo no caos gentil do trânsito do Vietnam, almoço com ele e com outros brasileiros que recém se mudaram para o país asiático.

Uma companhia local em impressionante expansão absorveu muitos pilotos da Avianca Brasil. A conversa num ótimo restaurante argentino segue animada, e a tarde passa voando.

Por fim, tomamos café ao lado dos destroços de um B-52 derrubado durante a operação Linebacker II, infamemente chamada de “Bombardeio de Natal” pela imprensa naquele agora longínquo dezembro de 1972, num dos capítulos finais da Guerra do Vietnam.

Na ruazinha à margem do lago onde se vê parte da fuselagem da barriga e um trem de pouso semi submerso da gigantesca aeronave atingida por um míssil terra-ar, um grupo de meninos joga futebol. Como bons brasileiros que somos, trocamos alguns passes com eles a 20 mil quilômetros da nossa terra natal.

Uma senhora que era provavelmente adolescente na época da Guerra e talvez morasse já em Ngoc Hà, mesmo bairro onde os restos do avião seguem preservados como um troféu, nos chama atenção gentilmente para que não esqueçamos os capacetes em cima da moto. A vida segue tranquila nessas ruas residenciais que temos o privilégio de presenciar em tempos de paz. E o Vietnam real, tão diferente de qualquer pré concepção que se possa ter, nos desafia a visitá-lo e conhecê-lo.