Casos e causos – Parte 1

posted in: Fernando Sosnoski, Textos | 25

 
Olá amigos leitores do Canal Piloto,

Reforçando sempre meus agradecimentos pelo apoio de vocês, inicio nossa coluninha carnavalesca-voadora desta semana contando algumas histórias interessantes que se acumulam de minhas entrevistas com pilotos amazonenses.

As duas primeiras são de dois amigos do Aeroclube do Amazonas (ACA): Francisco e Allyson. Estes dois são PC/IFR e professores do teórico de PP, PC e CMS no aeroclube. Grandes amigos e muito gente boa, têm já na bagagem muitos causos inusitados, como estes abaixo, ocorridos no ACA, que gravei num bate-papo que tivemos após me darem entrevista para uma matéria sobre segurança em vôo que em algumas semanas irei publicar aqui.

Depois, a última história é de um ex-piloto de garimpo, hoje aposentado e criador de galinhas. Este senhor me surpreendeu com seu histórico de “bizarrices aéreas”; a vida profissional dele renderia facilmente um livro, assim como de tantos outros sobreviventes desse ramo da aviação na Amazônia.  Ele me proibiu de tirar fotos dele e concordou em publicar as histórias que me contou se, e somente se (até imagino os motivos) eu não identificá-lo – a não ser pelo seu apelido na época: O Bode.

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Antes que endureça

*Transcrição exata da gravação*

Francisco: “A gente sabe que aqui na nossa região, por ter muitos lugares inóspitos, nós fazemos muitos vôos de misericórdia, ou seja, transporte de enfermos. Ainda que seja feito de maneira informal – o correto seria fazer esse transporte em avião equipado, com médico à bordo, etc., coisa que nem sempre o paciente tem condições de pagar – devido às longas distâncias às vezes não é possível o enfermo passar vários dias viajando de barco, e a aviação aqui tem muito esse papel também”.

Figura 1

Francisco, posando no AD de Santa Isabel do Rio Negro-AM

(Imagem: Arquivo Pessoal)

“Foi um dos meus primeiros vôos, então foi uma história que me marcou bastante…”.

“Uma vez nós recebemos uma missão de ir à cidade de Maués, num Sertanejo (EMB 721 / Piper Saratoga), para buscar dois enfermos: Um deles em estado bastante grave, com problema cardíaco. Então, chegando lá embarcamos os dois, mais um acompanhante, decolamos e aproamos Manaus. Escolhemos um nível bem baixo, pra que a altimetria não prejudicasse (os enfermos) e vínhamos com tempo bom, tranquilos. De repente um dos pacientes – o mais grave – faleceu. E nós.. bem, nós não poderíamos pousar com esse corpo em Manaus, por questões de fiscalização e etc. Como eu disse, esse transporte de enfermos é informal mas é aceito, pois é o único jeito às vezes, só que no caso de óbito à bordo, não era tão simples. Então nos demos conta de que nós ainda tínhamos a bordo também o outro enfermo, que precisava de atendimento. Ficamos então entre a cruz e a espada,  mas após curta discussão decidimos prosseguir com o vôo e pousar em Manaus”.

“Pousamos. Já tínhamos pedido uma ambulância e após o pouso a equipe do SAMU foi dar atendimento ao paciente. Deixamos o morto sentado no avião e ficamos aguardando a ambulância ir embora, tranquilamente. Então um dos paramédicos se aproximou do avião, olhou, olhou e disse: – ‘Olha, se esse morto ficar muito tempo aí, ele vai endurecer e depois vai dar trabalho pra esticar ele”.

“Surpresos com a calma do rapaz, deixamos o disfarce (fracassado) pra lá e fomos tirar o falecido, que já apresentava sinais do rigor mortis. Fizemos uma forcinha e conseguimos esticar o infeliz em cima de uma maca, colocamos de volta no avião e decolamos imediatamente para devolvê-lo à família em Maués”.

“Aliás, pra todos os efeitos, ele morreu em Maués, tá?”.

“Você vai publicar isso?”.

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Meu filho está saindo

*Transcrição exata da gravação*

Allyson: “Éramos recém checados no PP e estávamos na fase ‘rato de aeroclube’. Vivíamos aqui (no ACA) pelos hangares procurando oportunidades de voar. Numa dessas acompanhei o Cmte João numa missão para uma cidade próxima, num Minuano (EMB 720D)  para transportar uma criança enferma, uma enfermeira que a acompanhava e uma mulher grávida que estava em trabalho de parto, com complicações, que precisava de uma cesariana urgente”.

Allyson, posando no cockpit do B737 em SBEG

(Imagem: Arquivo Pessoal)

“Após o pouso, vimos a criança sair auxiliada pela enfermeira, e logo atrás a mulher grávida. Ela (a grávida) pulou do avião e não deu nem um passo e já começou a baixar a roupa. Enquanto fazia isso ela gritava: – ‘meu filho tá saindo, meu filho tá saindo!!'”.

“Nisso, a enfermeira da criança largou ela com soro e tudo e correu em auxílio da mulher grávida, que a essa altura estava andando pra ambulância segurando a cabeça já visível do filho. Os paramédicos e a enfermeira ajudaram ela a caminhar, e quando ela enfim chegou à ambulância, foi deitada na maca já com a criança no colo”.

“Esse episódio é clássico aqui no aeroclube, pois tinha muita gente no pátio na hora e viu tudo – aliás, tiraram muitas fotos (não consegui nenhuma). Até hoje brincamos que o menino quis nascer em Manaus e seu nome provavelmente será João, em homenagem ao Cmte. Aliás, reza uma lenda que quando o garoto completar 18 anos, o Cmte João vão financiar seu curso inteiro de piloto comercial”.

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Só duas balas

*Transcrição editada da gravação, removendo 85% do conteúdo os palavrões e matrículas de aeronaves*

Bode: “Foi em Rondônia, já faz uns 20 pra 30 a nos. Eu ia de manhã de Porto Velho pra Cacoal num (Cessna) 210 levando a mulher do meu patrão na época. Cheguei lá, desembarquei a ‘véia’ e fui atrás de comer alguma coisa. Depois fiquei por ali, abasteci e fiquei esperando ela voltar, porque a gente ainda ia pra Porto Velho de novo. 2, 3, 4 horas e nada.. fiquei lá.”

“Deu umas horas lá e chegou o Zé – um caboclo gente boa, que eu sempre topava pelos céus dos garimpos. Pousou, me viu e veio me cumprimentar. Falei que ia pra PVH e ele me disse pra ficar esperto, que tinha uns ‘caroção’ (CB) se formando no caminho. Falamos mais uma meia hora e chega a mulher do patrão. Dei tchau pro Zé, embarquei a véia e subi.”

(Imagem: Reprodução)

“Lembrei do que falou o Zé e vim bem baixinho, pra pegar só chuva. Em 20 minutos eu tava debaixo de um ‘toró’ daqueles. O avião sambava pra lá, sambava pra cá, eu tentando aprumar o bicho e a velha começou a reclamar, dizer que ia morrer, rezar e o escambau. Ficamos nisso uns bons 10 minutos. Saí de repente, limpou tudo e ficou o céu mais bonito do mundo. Ela tava emburrada – deve ter sido porque eu dei uns grito nela, assim de leve, na hora do temporal porque eu num gosto de gente medrosa, que começa logo a rezar por qualquer coisa – aí eu disse: – ‘que foi?’. E ela: – ‘você xingou porque eu comecei a rezar. Eu fiz isso por que eu tava com medo. Meu santo Expedito que salvou eu  e você, se você tivesse sozinho, já ia morrer.’”

“Eu nem respondi, velha chata da p**ra. Fui indo, achei a rota de novo e chegamos logo em Porto Velho. Era umas 15h. Pousei. Estacionei o avião e já ia saindo lá pra Farquar, perto das caixas d’água, encontrar uma namorada que eu tinha que morava por ali. Nisso chega o patrão e diz: – ‘Bode, vai lá pegar o avião, nós vamos ter que ir lá em Cacoal de novo’.”

“Fui, muito p*to mas fui. Preparei tudo, decolamos. Assim que passamos em cima de Candeias do Jamari decidi ver se tinha alguém voando por ali, pra saber como tinha ficado o tempo ruim lá na frente. Um cidadão respondeu na livre (123.45) que vinha pra Porto Velho, mas perto de Ariquemes deu um 180 e ia esperar lá em Ji-Paraná, porque tava feio o negócio. ‘Frouxo’ eu pensei. Mantive a proa e rapidinho avistei a formação. Eu ia baixo, pra fazer igual da outra vez, mas quando eu ia chegando perto, vi que a formação tava muito baixa e que eu ia ter que furar, tava muito perto pra dar a volta.”

“Olhe meu rapaz, aproveitando, vou te dar um conselho: nunca dê uma de doido não, mesmo quando você tá p*to, volte, não entre em mau tempo não porque nuvem não tem medo de cara feia.”

“Então. Estou lá eu brigando com o avião, tentando segurar no horizonte, uma turbulência do cão, sacode daqui, sacode de lá, e eu tentando, aí de repente o motor dá uma rateada, bem curtinha, mas como eu conhecia muito aquele avião, eu notei. Daí no automático eu olhei o painel e vi que a pressão do óleo já tava chegado no vermelho. Eu atento ao horizonte não tinha visto nem chegar no amarelo. Olho pro patrão, tá caladinho, mas sei que ta morrendo de medo. Não digo nada pra não meter medo no homem e decido: Tô vendo nada, já to muito enfiado pra pensar em voltar.. Rapaz, deixa essa p**ra se rasgar aí, eu vou embora! Cabrei um pouco pra ganhar altitude, porque eu ia precisar. Não subi nem 1.000 pés escuto o barulho que eu tava esperando: bateu motor. Num pulo taquei a manete da RPM pra posição bandeira e fui procurando o melhor ângulo de planeio. Achei. Olho pro chefe e o homem já tá com a maleta no colo, uma mão no extintor e outra no tranco da porta. Eu não aguentei, comecei a rir. Ele riu também.”

“Pra não ficar enrolando, eu vou pular a parte que fiquei segurando o avião no ar, porque eu não tava pensando em nada ainda, eu não via nada, ia pensar o que? Mas não demorou muito a gente saiu da camada, mas só que saiu pra baixo, claro. Aí eu vi que tinha uns 600 pés só pra gente cair. Olho prum lado, nada. Olho pro outro, penso ver um rio, devia ser o Jamari, aproei ele. Se não morrer, é pra lá que eu vou. E nessa hora lembro da desgraçada da mulher do chefe, que disse que eu ia morrer se ela não tivesse perto, ô boca podre!”

(Imagem: Arquivo Pessoal)

“Já quase lambendo a copa das árvores, flapeei tudo que faltava, baixei o trem e cabrei eté encostar o manche no peito pra cair de cauda. O avião flutuou um pouco até que senti uma pancada e na minha esquerda vi os galhos engolindo a asa. O avião rodou um pouco pra esquerda e senti outra pancada, muito forte, e depois foi uma quebradeira que eu não entendi nada, só lembro de ver a asa esquerda ficando pra trás e o chefe do lado dizendo “ai meu De..” e o barulho engoliu a voz dele. Isso tudo foi rápido, e eu me dei por mim já tava no chão. A gente caiu de cauda, isso amorteceu quando a cabine bateu, por isso escapamos. Eu fiquei com uns arranhões no rosto e nos braços, e o patrão saiu inteirinho, o maldito.”

“Saímos do avião e nos afastamos. Ninguém se falava. Depois de um tempo, ele disse: – ‘acho que não explode mais não’. Aí voltamos lá pra pegar tudo o que servia: uma garrafa de água com um litro no máximo, umas bolachas que ele vinha comendo, o 38 que eu sempre carregava, mas que só tinha 2 balas no tambor e um isqueiro. Tentei usar o rádio, mas não prestava mais nada. Isso já era quase noite e pelo barulho da mata eu percebi que nosso problema não tava perto de terminar.”

“Adivinhando o que eu tava pensando o chefe fala: será que tem onça por aqui? E queixada? (Queixada é uma espécie de porco selvagem, que anda em bandos e são muito agressivos, sendo mais temido até do que onças ou cobras). Eu não vou mentir não, eu fiquei com medo só de pensar. A hora a gente já foi atrás de uma árvore pra subir. Passamos a noite acordados, assombrado com o barulho da mata e matando carapanãs.”

“De manhã, descemos e começamos a andar pro rumo que eu penso ter visto um rio, supondo que não me desnorteei na queda. A gente não tinha nem um canivete pra abrir caminho, e o jeito era se tacar no mato sem encostar nas árvores, porque era cheio de taxi por ali (taxí é o nome popular de uma árvore e também de uma espécie de formiga que nela habita em simbiose. Super agressivas e com uma picada muito dolorida). A fome ia apertando e a gente tomava só golinhos de água, pra durar. Falei pro patrão que teríamos que caçar alguma coisa.”

“Depois de andar mais um bocado, escutamos um barulho de passos, de algum animal pequeno. Rapidinho subimos numa árvore, mais por medo do que pra emboscar. Assim ficamos em silêncio por mais de uma hora quando passa bem embaixo de mim uma Cotia. Não esperei muito, dei um tiro que pegou bem no meio dela. Desci da árvore correndo, porque ela ia tentando fugir, joguei o 38 pro patrão e sai correndo atrás da infeliz, que não andou muito e tombou. Estou pronto pra juntar ela do chão e o doido aparece e atira nela de novo. Filho da… eu disse. Só tinha duas balas, por que tu fez isso? Ele: – ‘fiquei com pena da bichinha’. Pena é o c… rapaz. Agora não tem mais balas!! Ele ficou meio agoniado, mas tanto eu como ele tinhamos tanta fome que deixamos pra lá logo. Carreguei a cotia pra um lugar mais aberto e começamos a procurar madeira seca, pra fazer fogo. O patrão fala: – ‘não era bom limpar logo a cotia? Tirar as tripas e tal?’ Eu digo sim ao mesmo tempo que me lembro que não tínhamos faca. Pronto, passamos a tarde tentando rasgar o couro da cotia, com a mão, com pedaço de galhos, com o cano do 38, com tudo, Nada.”

“Já ia anoitecer de novo e acendemos o fogo pra fumaça chamar a atenção. Era provável que já iam começar a procurar por nós. No auge da fome, olhei pra cotia, olhei pro patrão e me deu a loucura. Peguei a bichinha, espanei os sangue seco e comecei a chupar pelo buraco. Veio um sangue frio, muito ruim, mas a sensação de engolir qualquer coisa me fez bem na hora. O patrão quase vomita, não quis de jeito nenhum. Problema dele.”

(Imagem: Reprodução)

“Amanhece de novo, dou uma ultima chupada no buraco da bala da cotia, que já tinha um gosto horrível, e começamos a andar de novo. Percebi que o terreno descia e apareciam uns buritis. Seguimos mais rápido e achamos o rio. Depois disso não tem mais graça, porque pela ideia que eu tinha de onde caímos, decidi descer o rio. A gente caminhou mais umas 4-5 horas e chegou na estrada. Pegamos carona pra Ariquemes e de lá resolvemos.”

“Depois disso tudo, troquei de emprego, fui pros garimpos do Pará e até hoje só ando com o 38 todo carregado e uma faca deste tamanho (pelo gesto, deve ter uns 2 metros esta faca), hehehehe.”

Bem amigos leitores, espero que tenham gostado destas histórias e sintam-se a vontade para expressar suas opiniões nos comentários. Semana que vem, mais causos (Rá! não vou entregar todo o ouro de uma vez).

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Abraços a todos, cambio e desligo. 

Fernando Sosnoski

Renato Cobel
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