Saudações leitores do Canal Piloto.
Nesta semana, como prometido, teremos a segunda (mas não última) parte dos Casos e Causos da aviação na Amazônia. Na verdade este título será periódico aqui; pois quer seja nas entrevistas que faço para coletar informações sobre temas para a coluna, quer seja nas visitas ao aeroclube, sempre encontro pessoas com boas histórias e causos que gravo para compartilhar com vocês.
Hoje darei continuidade às histórias do Bode, piloto aposentado e sobrevivente de situações extremas vividas na região norte nas décadas de 80 e 90. Assim como no texto anterior, farei a transcrição 99% fiel à gravação na fita (sim, eu prefiro usar gravador analógico), removendo apenas matrículas de aeronaves, nomes de empresas e pessoas – em cumprimento à exigência dele para publicação – fazendo minhas observações entre parêntesis.
Pra mim cobra é tudo cobra
Bode: Essa aconteceu em 89, por aí. Eu tinha passado um tempo sem voar; a ‘puliça’ tava marcando de perto (os vôos) lá em Rondônia, porque tava morrendo muita gente no garimpo e eu já lhe disse né, que eu sempre fui medroso – acho que é por isso que eu tô vivo até hoje. Daí por isso eu aceitei um convite de um parceiro na época que voava táxi aéreo aqui de Manaus pra pilotar um (Cessna) 206 com cargo (body). Eu já tava acostumado com pista de garimpo, então pra mim essas pistas do interior foi moleza. Fui levando essa vida mansa aí por quase um ano, aí soube que as coisas tinham esfriado lá pra baixo e decidi voltar. Eu não gosto de cidade grande, sabe?
De volta ao que eu gostava mesmo de fazer, peguei na primeira missão o mesmo (Embraer) Corisco que eu voava antes de sair de lá. Tinha que ir num inferninho lá perto da Bolívia, levar fumo, munição e cachaça e trazer o ouro pra Porto Velho. Fui sozinho, cheguei lá, tranquilo, estacionei o avião e fui no acampamento pegar a sacola. Peguei, e voltando pro avião um garoto – garoto mesmo, tinha uns 15 anos no máximo – me parou e perguntou se eu podia trazer um motor pra consertar e levar de volta na próxima viagem. Eu aceitei e mandei ele colocar o motor no avião. Ele foi lá e colocou um caixote desses de madeira, com o motor e uns bocados de capim em volta, não sei pra quê. Beleza, ele me pagou na hora pelo favor, e em ouro. Dei partida e decolei.
Rapaz, eu tava lá tranquilo, seis mil pés, tempo bom, de repente sinto uma “coçadinha” no pé. No susto eu recolhi, olhei pra baixo e vim uma corda. Uma corda vermelha com preto e branco. Pensei: “que p**ra de corda é essa?”. Peguei ela e ia puxando quando aparece a ‘cabeça da corda’.. Pense num grito e num pulo que eu dei…
(Imagem: Reprodução)
Rapaz, era uma coral maceta. Deste tamanho (os braços abertos ao máximo), dava uns 3 metros brincando (a coral atinge cerca de 60cm de comprimento, quando adulta). Eu dei um grito tão grande que se ela pudesse, ela gritava também. Tirei o cinto e suspendi os pés, fiquei de cócoras no banco, suando mais que tampa de chaleira. Pior, a desgraçada se enroscou nos pedais e ficou lá me olhando. Eu tinha tirado o assento do copila e não teve jeito, fui levando o avião enquanto decidia o que fazer. Eu sei que você tá pensado: “ah, porque o Bode não meteu o pé na cobra?”, pois se eu tivesse de bota pelo menos, agora de (sandálias) Rider® eu não ia.
Pois sim, continuando. Ficou pior ainda, fica vendo. A bichinha enrolada lá nos pedais e eu chegando em Porto Velho já rezando. Como é que eu ia dar pedal, meu deus? Descendo na rampa da pista do aeroclube, pegando aquele ventinho de través que só aparece quando você já tá f… Fiz o melhor que deu, meti o catrapo, pulei do banco e meti o pé nos freios do lado do copila, rodei avião, abri a porta e sai correndo. Parei a uns 50m, quando vi que não tinha porque correr tanto. De onde eu tava vi a moçada corrar pro avião e depois correr de volta. Aí eu rí, né…
Uns dias depois um cidadão me disse que aqui no norte é difícil aparecer a coral verdadeira. Só tem a coral falsa, que não é venenosa. E mesmo a coral verdadeira não é assim tão perigosa, porque os dentes que injetam veneno ficam atrás, na boca, la no fundo. Pra ela te envenenar, tem que agarrar bem seu dedo e ficar lá grudada. Rá, tá bom! Pra mim cobra é tudo cobra…
Ah, seu bode burro!!!
Bode: Essa eu lembro bem, muito bem. Foi em 86, março de 86. Eu tava fazendo o transporte de pessoal e material dum garimpo artesanal na região de Itaituba (PA), umas 200 milhas à oeste. O garimpo não tava dando certo e o seu Fulano tava trazendo o pessoal e o material de volta. Eu tava fazendo essa missão num (Cessna) 210. Na última viagem fui sozinho, tendo tirado os assentos pra trazer um bode – veja bem,um bode carregando outro bode, hehehe –, uma caixa de ferramentas e uns tubos de alumínio, de alguma peneira rotativa que tinha ficado.
( Imagem: Reprodução)
Já eram umas 4 da tarde e tinha caído uma chova forte e rápida entre esta viagem e a anterior. A pista era meio de ladeira, então não tive problemas no pouso. O Problema é que no lugar que parei o avião tava lamacento e quando fui manobrar pra pegar a pista de novo, escorreguei pra dentro de uma vala. A roda esquerda afundou na lama, mais da metade dela.
Eu sou meio nervoso, sabe? Antes de descer do avião, eu já tinha xingado São Pedro e a família dele inteira. Eu dei potência máxima e o avião sacodia todo, mas não saía. Saltei e vi a m*rda. Tentei empurrar por desencargo, mas sabia que não adiantava. Fui no mato e arranjei uma vara e meti por baixo do apoio do trem e tentei suspender pra colocar alguma coisa embaixo, a vara quebrava toda vez. Eu fui ficando p*to, o calor ainda tava forte, eu com sede, o suor descendo, o bode berrando e o avião parecia que afundava mais quanto mais eu mexia. Tive outra ideia. Na caixa de ferramentas tinha um facão, e comecei a cavar na frente da roda, fazendo uma rampa. Subi, liguei o avião e dei potencia. Ele andou um pouquinho e parou. Desci de novo e vi que tinha afundado igual, não ia dar certo. Sentei um pouco, acendi um cigarro e tentei relaxar.
E o bode berrando…
(Imagem: Reprodução)
De repente me veio uma ideia. Olha a ideia: eu liguei o motor, calcei o pedal pra ele não puxar pro lado da roda presa e dei um “pouquinho” de potência, só até sentir a tração forte. Desci e fui tentar empurrar, com um pedaço de pau, suspendendo o trem, fazendo uma alavanca. Fiz força que nem um burro, o avião moveu um pouco, eu forçando, ele moveu mais um pouco e foi pegando embalo. Dei uma pressão bem forte e ele saiu e já foi embalando. Larguei a vara e ia correr pra entrar no bicho, mas não via nada porque a hélice jogava lama na minha cara e eu escorreguei e caí. Levantei já desesperado e saí correndo igual um porco velho cheio de lama pra alcançar o avião que já ia correndo. Eu tinha calçado o pedal, então ele ia curvando pra direita, e eu patinando tentando correr, e o avião correndo e eu ficando pra trás e só lembro de ver o bode pela janela, horrorizado, e o bocão aberto: MÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉ.
Bode que pilota só conheço eu, aquele lá.. Coitado. O avião fez uma curva e entrou no mato. Eu só via a quebradeira lá no meio da capoeira até chegar nas árvores, aí foi um barulhão da hélice no mulateiro. E eu, parado na frente na capoeira toda estraçalhada pelo avião botei a mão na cabeça, pensei na m*rda de ideia que eu tive e gritei: “AHHH BURRO, BUUUURRROOO”.
(Imagem meramente ilustrativa: Reprodução)
De repente, escuto o bode desesperado de novo: “méééé, méééé, méééé”. Cheguei no avião, abri a porta e esse bode saiu com tanta pressa que antes de eu me virar de costas ele já tinha sumido no mato. Nunca mais vi o coitado.
E eu? Rapaz, eu fiquei lá né, a noite caiu logo e eu me tranquei no avião. Já te disse que morro de medo de onça e queixada? Pois é. Fiquei trancado lá morrendo de fome e sede e me tremendo toda vez que ouvia um chiado no mato. Rapaz, eu me tremia mais que chevete em ponto morto. O rádio funcionava, mas não achei ninguém.
No outro dia de manhã, acordei com um barulho de avião, chamei na livre, o cara respondeu e eu disse que tive problemas no freio e tinha varado a pista. Pra que dizer a verdade, ne? O piloto disse que ia avisar em Itaituba. Fiquei descansado, apesar de que a fome tava extrema. Deu até vontade de ir atrás daquele bode, pra matar e comer… A sede eu resolvi logo, porque andando com mais calma pelo lugar, achei um poço e puxei um balde d’água. Era barrenta, mas era a que tinha.
O dia ia caminhando pro fim quando eu me perguntei se o cara tinha avisado mesmo a alguém. A ideia de dormir de novo no avião me deixou assombrado. Não teve jeito. Dormi lá de novo. No terceiro dia já, de manhã bem cedo, fui acordado pelo barulho do motor de um (Cessna) 182. Era meu resgate.
Vou te falar a verdade, durante uns 5 anos depois disso, onde eu chegava, ainda se contava a piada de que eu botei o bode no comando e fui empurrar o avião. Daí que veio meu apelido, que ficou até hoje.
(Imagem: Reprodução)
Espero que tenham gostado. Na próxima semana a matéria sobre o Super Petrel LS, o queridinho da aviação desportiva manauara.
Abraços a todos, e até a próxima terça. Méééééééééééé pra vocês!
Fernando Sosnoski