Saudações leitores do Canal Piloto.
Terça-feira 6 da manhã, hora local. Em Manaus, chuvinha típica do mês de março aliviando (um pouco) o calor típico do ano inteiro.O sol vai se erguendo preguiçoso. Eu desperto.
Você estará acordando? Talvez indo comprar pão pra tomar café, ou se vestindo? E depois vai trabalhar? Você entra no trabalho às 7h30 ou é sortudo e só entra às 9? Vai de ônibus ou vai no seu carro? Ah, você não vai trabalhar? Está de férias? Está indo pro aeroporto, tomar o avião que te levará ao litoral?
Antes de mim e você já se acordaram muitos: o padeiro que já assou muitos pães esta manhã além do seu, o motorista do ônibus que já fez 3 vezes a rota da linha 205, o velhinho que não passa da 3ª marcha dirigindo à sua frente, te deixando p*** logo cedo, o porteiro do prédio do seu trabalho, o fiscal do estacionamento do aeroporto, a moça do check-in, o carinha da Infraero que bipa sua passagem, o fiscal de pátio, o piloto que trouxe o avião até ali e vai levá-lo até onde você vai descer. Terça-feira, 7 da manhã. A imagem em alta definição de um dia comum e normal, para mim, para você e para aquele piloto.
Por que estou dissertando sobre isso?
A essência do texto desta semana está numa pergunta que ultimamente tenho me feito com frequência: “Como é ser piloto?”.
Cockpit do E190
(Imagem: Divulgação)
Quando iniciei o teórico de PP, tinha um gás tremendo: contava as horas pra aula começar, chegava cedo ao aeroclube, perguntava muito na sala, apressava o professor e todo dia quando chegava às em casa às 23h ainda fazia um pé de galinha e ia pro FSX praticar correção de deriva, ângulo de melhor planeio ou ainda simular panes, até altas horas, mesmo sabendo que teria que trabalhar logo mais. Isto sem falar que tudo o que eu lia, soletrava em alfabeto fonético e a qualquer momento ocioso me perdia sonhando em ‘quando eu for PLA’.
O tempo foi passando e fui fazendo amizades no aeroclube, inclusive com pilotos. E foi graças a essas amizades que fiz meus primeiros voos. Fosse acompanhando uma aula de um colega mais adiantado, ou ocupado uma cadeira vazia num panorâmico, ou mesmo fazendo companhia durante um fly-test, assim fui conhecendo o lado mais realístico d aprofissão que escolhi e na qual investi todas as minhas fichas.
Hoje em dia já quase não abro o FSX, prefiro ler o manual da aeronave. Já me acostumei com o alfabeto fonético e com o diálogo impessoal da fonia.Não fico mais vendo vídeos de B777 ou A340, prefiro ver os vídeos dos colegas pousando Senecas ou Skylanes em pistas de terra batida.Não vejo mais graça naquelas conversas que todos nós temos nos primeiros dias de teórico de PP, onde sempre tem aquele colega que sabe todos os nomes e versões de todas as aeronaves que você imagina; prefiro ouvir as histórias dos veteranos que se referem ao avião por sua matrícula, pois pouco importa se é um EMB 712 ou 720.
Por que continuo divagando sobre isso?
Porque ouso dizer que hoje em dia eu entendi. O meu amor pela aviação amadureceu e chegou finalmente ao equilíbrio. Agora vejo o real sentido da coisa, entendo a tal paixão por voar. Aquela ideia que eu tinha de que minha realização pessoal seria voar o B777, quatro faixas no ombro, entrar no avião usando RayBan, com uma música do Led Zeppelin ao fundo, passeando entre as nuvens, tipo comercial de perfume francês, acabou.
(Imagem: Reprodução)
Acabou não porque eu tenha desistido – muito pelo contrário – eu ainda quero sim, chegar a PLA. Mas o sonho amadureceu. Tudo começou,especificamente, num dia que o amigo e Cmte Wilson me convidou para um voo no Seneca. Eu ainda estava na fase “I believe i can fly, i believe i can touch the sky” (Vish)…
Neste dia ele me perguntou logo que chegamos ao FL055: “já pilotou Seneca alguma vez?” e antes que eu pudesse responder que não, continuou: “tá contigo”. Ele me deixou com os comandos durante uns 10 minutos, durante os quais me pediu uma curva de média e uma de grande, me explicou como corrigir a deriva nos pedais e me pediu pra iniciar uma descida com razão de 500ft/min. A atmosfera estava um tanto instável e confesso que foi muito constrangedor pra mim, na minha primeiríssima vez no comado de um avião, não conseguir mantê-lo estabilizado nem mesmo por 1 minuto.
Lembro bem da sensação: terror! eu simplesmente não conseguia olhar ao mesmo tempo para o horizonte, altímetro, climb, velocímetro, bússola, bolinha de derrapagem… No momento mais importante, quando eu quase consegui “parecer” que sabia algo, arrisquei uma olhada para a paisagem por uns pouquíssimos segundos.
Foi quando Wilson disse: “Gostou da vista? Bonito né? Mas já era proa, já era nível, já era razão de descida, já era velocidade. Imagina se ainda precisasse fazer fonia”. Realmente, eu me perdi totalmente… Foram apenas 10 minutos “pilotando”, mas foi o suficiente pra eu perceber que eu não sabia nada de nada.
Ainda neste mesmo voo, já durante a aproximação de SWFN, Wilson me entregou a fonia (ou quase, pois ele sinalizava quando e o que falar). Foi de grande valia e outra vez confesso: me senti“o cara” ao cotejar as instruções do APP. O dia terminou feliz, afinal.
Cockpit do Seneca
(Imagem: Divulgação)
Eu percebi aíque um curso teórico é muito importante para passar na banca, mas não faz de você nem a sombra de um piloto. Percebi que não importa quantas mil horas você tenha no FSX, você não sabe PN sobre aviação. Aprendi que na aviação de verdade, o jovem piloto percebe muito rapidamente que sua atenção tem que estar nos instrumentos, e que as olhadas pelo para-brisas são raras. Aprendi também que este mesmo jovem piloto amadurece, e chega o dia em que ele faz o checklist de pouso só de passar os olhos pelo painel, em menos de 1 segundo, e somente pelo barulho do motor ele sabe em quantos RPM’s estão.
E é neste dia, amigo leitor, que nós saberemos como é ser piloto.
Pensem que como em qualquer outro emprego, deve haver o dia que o piloto não queria levantar da cama. Deve ter aquela semana que ele está sem grana pras contas e fica o tempo todo com ar preocupado. Deve ter o dia que ele está tão confiante e distraído que entra na final sem baixar o trem, e por puro acaso nota no ultimo instante as luzes vermelhas e arremete. Ele deve ficar assustado alguma vez, quando está com pouco combustível, o aeródromo fecha e ele não tem alternativas. E tudo isso pra ele será já tão normal quanto é para mim ou para você fazer aquela planilha de relatório de entradas e saída mensal no seu emprego.
Trazendo esta discussão aqui para a nossa região, lembrei-me agora de algo que os Cmtes Francisco e Alysson me contaram no mesmo dia que relataram suas histórias para os Casos e Causos – Parte 1. Numa viagem para Tabatinga, extremo oeste do Amazonas, percebia-se ao longe o mau tempo se formando. Havia já pouco combustível no Seneca, e caso precisassem alternar, teriam que decidir imediatamente. Chamaram o Centro Amazônico para pedir informações sobre aquela formação à sua frente, mas como de costume, não obtiveram resposta. Já sabemos que o Amazonas é o maior estado brasileiro, com uma área territorial maior que a Mongólia. Uma viagem de Manaus a Tabatinga é o mesmo que atravessar França, Espanha e Suécia. Somando-se as enormes distâncias com o descaso de nossos ilustres governantes – que em tantas décadas não se propuseram a investir em infraestrutura para o transporte aéreo – é muito normal nossos pilotos voarem literalmente sozinhos sobre o tapete verde; os pontos cegos do rádio são imensos.
Cmte Francisco, um apaixonado pela aviação padrão
(Imagem: Arquivo Pessoal)
Neste caso porém, era muito importante obter informações sobre o tempo à frente. Insistindo ainda no centro amazônico, foram chamados na frequência livre por um TRIP que fazia uma outra rota, muito acima deles. O Cmte do TRIP se propôs a fazer uma ponte com o Centro, pois na altitude que ele ia, conseguia falar tranquilamente com Manaus. Assim foi que conseguiram se comunicar e descobrir que a formação era pequena e não apresentava grandes riscos. Prosseguiram.
Já chegado em Tabatinga, outra particularidade: esta cidadezinha brasileira faz fronteira com Letícia, uma cidadezinha Colombiana. Os aeródromos ficam muito próximos, de forma que quando se está na perna base de Tabatinga, você está na perna final de Leticia. Graças a este detalhe, quando os colegas se aproximam daquela região, precisam chamar o APP de Letícia antes de chamar a Rádio Tabatinga. Em espanhol, obviamente.
De cima pra baixo, Letícia e Tabatinga.
(Imagem: Google Maps)
Na volta, aquela formação já não existe, mas uma muito pior brotou do chão e escureceu totalmente o céu. De novo não há resposta do Centro Amazônico e dessa vez não há outro avião lá na ‘Jesusfera’ para fazer ponte. Entram na formação e o Cmte fica uns bons 40 minutos brigando ferozmente com o manche e os pedais para manter a proa. Como disse o Cmte Francisco: “Uma mão no manche e a outra no assento, se segurando no lugar”. Depois de sair do mau tempo, o alívio de iniciar a descida, em segurança.
Chega-se a Manaus, pousa-se em SWFN e pronto: missão cumprida. Enquanto isso, alguns alunos de PP que chegaram cedo para o curso e nem sonham o dia terrível que estes pilotos tiveram, observam o toque um pouco desengonçado daquele Seneca e comentam entre si as falhas do piloto naquele pouso e julgam: “esse aí não tem experiência”.
(Imagem: Reprodução)
Esta é mais ou menos minha concepção atual de como é o dia normal do piloto amazônida, as situações corriqueiras que não imaginamos quando sonhamos acordados durante as primeiras aulas teóricas. Nada a ver com aquele estereótipo hollywoodiano; são pessoas normais, que tem famílias e contas a pagar, que ficam p_ com o aumento do preço da gasolina e que vibram na véspera de um sábado de folga. Escolheram esta profissão por saber de alguma forma que nunca seriam felizes fazendo outra coisa na vida. Seja um PLA ou um PC, voe jato ou voe pistão, voe entre RJ-SP ou voe sobre a selva, arriscam-se – principalmente neste último caso – diariamente para se sustentar.
Nós, aspirantes a PP, vamos aos poucos aprendendo que a aviação não é um conto de fadas, cheio apenas de glamour, dinheiro, champanhe, mulheres sexy e paisagens lindas.Existem também as dificuldades, o cansaço, tédio, o medo, o pânico, o perigo, a dúvida e o risco de morte… Mas mesmo com tudo isso, eu tenho certeza absoluta de que todos os pilotos têm, em seu coração, a máxima: “Não acredito que me pagam pra fazer isso”.
Fernando Sosnoski
Futuro piloto de bimotor a pistão em taxi aéreo para o interior. Isso é a felicidade.