Formação aeronáutica no exterior

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Coluna de Coaching de Formação Aeronáutica – Raul Marinho / Blog Canal Piloto
Tema da semana: Formação aeronáutica no exterior 

Já publiquei muita coisa sobre a formação aeronáutica realizada no exterior (especialmente nos EUA) no meu blog . Desde que escrevi o post “Tirar o brevê nos EUA – Vale a pena? , em que tratei dos aspectos positivos e negativos da instrução aérea realizada fora do país de uma maneira mais geral, os seguintes outros artigos sobre este mesmo assunto foram publicados no Para Ser Piloto até hoje:

Todos estes posts são textos bastante caudalosos, e eles ainda contêm, somados, mais de 150 comentários. Por isso, não vou me repetir neste artigo – daí eu ter apresentado os links acima logo no começo: ali você encontra praticamente todo tipo de informação básica sobre a formação aeronáutica no exterior. Agora, vamos tratar de considerações mais estratégicas sobre o tema.

A formação nos EUA é muito atraente devido ao seu custo (nem tanto agora que o dólar subiu, mas ainda é melhor que no Brasil), à qualidade da instrução, e à rapidez do treinamento. Quando um brasileiro descobre que pode obter suas carteiras nos EUA na metade do tempo que no Brasil, voando aeronaves “glass cockpit” num programa de instrução da FAA, e pagando menos, é difícil argumentar que ficar no Brasil pode ser uma opção mais racional. Daí este assunto gerar embates apaixonados no meu blog, onde sou visto como um combatente da “causa da instrução nos EUA” – e por isso um “inimigo a ser combatido”.

Ocorre que não é nada disso: eu não tenho nada contra os EUA e a instrução aeronáutica lá realizada, muito pelo contrário; só que, como um coacher de formação aeronáutica, tenho a obrigação de alertar sobre os riscos (geralmente ocultos) que esta estratégia pode acarretar. Para começo de conversa, é preciso ter uma determinada situação pessoal, profissional e econômica para que a instrução no exterior seja viável. Se você possui uma atividade profissional ou acadêmica no Brasil, fica muito complicado tirar uma licença longa para ir voar nos EUA – o Enderson Rafael (autor de um dos melhores relatos de quem voa nos EUA no meu blog) conseguiu, pois era comissário da Gol quando a companhia lançou seu programa de licenças não remuneradas, mas isto é bem raro de acontecer. Você precisa ter todo o dinheiro para a formação de uma vez, não dá para ir fazendo sua formação à medida que os recursos são gerados, como muita gente faz no Brasil. Para quem é casado e/ou tem filhos, também é complicado passar uma longa temporada no exterior. Enfim: esta estratégia vale praticamente só para quem é bastante jovem, descomprometido, desempregado, não matriculado em alguma faculdade, e tem todo o dinheiro disponível antes de embarcar. Ah, e que tenha um mínimo de inglês também.

Se é este o seu caso, dá para começar a considerar a formação nos EUA, mas é preciso muita atenção para os seguintes aspectos, principalmente:

O problema do QI

Existe um axioma clássico da Física Newtoniana que diz que não se pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. E por mais que a Física Quântica tenha solapado esse conceito a partir do século XX (vide o experimento do “Gato de Schrödinger”), o fato é que ainda não é possível estar numa escola de aviação americana e num aeroclube brasileiro ao mesmo tempo – e não adianta querer usar o Facebook para tentar fazer isso: o que conta mesmo é o relacionamento pessoal direto para estreitar relacionamentos. Esta limitação física e social pode acarretar dificuldades muito graves para quem se forma PC no exterior e depois precisa procurar emprego de piloto no Brasil: o sujeito pode obter sua licença em tempo recorde, numa escola de ótima qualidade, e pagando bem menos do que pagaria no Brasil; mas, apesar disso tudo, não conseguir se colocar no mercado de trabalho do Brasil por não possuir o “QI” necessário para tal.

Óbvio que, se você já possui excelentes contatos na aviação antes de embarcar para a sua temporada de formação aeronáutica no exterior, não vai fazer tanta diferença fazer o curso no Brasil ou no estrangeiro. E se você voltar ao país com um currículo parrudo, com milhares de horas de voo, diversas habilitações de TIPO, cursos diferenciados, etc. – que é o que discuti no meu artigo sobre fazer o INVA nos EUA, aliás –, a sua falta de “QI” também vai ser minimizada. Mas, para o “PC padrão” que volta dos EUA com os mínimos para o PC-IFR/MLTE e nenhum contato realmente relevante no mercado aeronáutico, a concorrência com os congêneres que realizaram a instrução nos aeroclubes brasileiros lhe será bastante desfavorável. A não ser que o mercado brasileiro esteja excepcionalmente demandado (como foi o caso de um curto período recente), o PC recém-formado em escola americana terá muita dificuldade para conseguir alguma colocação no mercado brasileiro. As coisas não são assim porque eu quero, porque eu sou um “inimigo da instrução realizada no exterior”, ou por algum viés ideológico anti-EUA que eu eventualmente possua… Eu só estou descrevendo o que observo acontecer rotineiramente com bastante frequência – com as exceções de praxe, como sempre, mas meu foco aqui é a regra geral.

Na prática, nenhum PC recém-formado, seja ele proveniente de um aeroclube brasileiro ou de uma escola de aviação americana, consegue uma colocação de comandante logo de cara. Supondo que esse sujeito não tenha nenhuma outra facilidade mais significativa (ex. entrar no programa de copilotos da Azul, que admite recém-formados), haverá duas opções básicas para ele iniciar sua carreira: ser INVA, ou atuar como copiloto na aviação geral. Em períodos “normais” – como o que está voltando a acontecer agora, com o volume de INVAs voltando a crescer no mercado -, os aeroclubes/escolas brasileiros só contratam os instrutores (especialmente os em seu primeiro emprego) formados integralmente na própria instituição: quem fez o PP, o PC e o curso de INVA no próprio aeroclube/escola em que haja a vaga de instrutor. Daí, o sujeito que voltou dos EUA com a sua licença de PC até poderia fazer o curso de instrutor de voo em um aeroclube/escola no Brasil, e tentar uma colocação onde ele checou a habilitação de INVA para ser instrutor. Só que, neste caso, ele vai estar atrás de todos os outros instrutores que, além disso, também obtiveram as licenças de PP e PC naquela instituição, e ele só vai conseguir se colocar naquele aeroclube/escola se o número de vagas for grande o suficiente para satisfazer a todos aqueles que lá tiverem checado o PP e o PC além do INVA. Isso elimina as chances de quem voou nos EUA conseguir um emprego de INVA no Brasil? É claro que não, mas dificulta bastante.

A outra opção – atuar como copila na aviação geral – é ainda mais complicada para quem não possui os contatos certos na aviação. Nem precisa ter se formado fora do Brasil para ver como é difícil o processo de construção de networking nos aeroportos brasileiros. Se você não voou no Aeroclube de São Paulo e nem conhece ninguém no Campo de Marte (para citar o exemplo de como a coisa acontece na capital paulista), experimente tentar se enturmar com os comandantes que atuam na aviação geral de São Paulo. Você não tem nem por onde começar: é difícil até passar da porta dos hangares… E, novamente, isso não acontece assim porque eu quero (aliás, eu acho isso tudo lamentável), só estou mostrando como as coisas são.

Quem se formou no Brasil, voou em algum aeroporto; então, pelo menos em uma localidade, essa pessoa vai ter alguma abertura para se enturmar com os comandantes da aviação geral, e cavar alguma oportunidade para voar de copila. Mas quem se formou no exterior vai ser um alienígena em todos os aeroportos do Brasil, e a dificuldade para se enturmar será muito maior. É isso o que quero dizer sobre o “problema do ‘QI’” para quem se forma no exterior conseguir uma colocação como copila na aviação geral brasileira. Não é uma barreira instransponível, mas também não é um problema fácil de resolver. Muitos acabam conseguindo se estabelecer mesmo tendo voado no exterior, mas outros tantos nunca conseguem. Então, reflita bem sobre este aspecto antes de ir para o exterior, pois isso pode ser determinante para o seu sucesso profissional. E não caia na conversa de que, pelo fato de você ter uma licença da FAA, as portas se abrirão para você. Ter licença da FAA é um atributo desejável, sim, mas não é isso que vai fazer a verdadeira diferença para um recém-formado. O que importa mesmo para quem está começando é ter uma boa indicação e um bom acesso às informações sobre quem está contratando.

Americano também é malandro!

Nós, brasileiros, sabemos como um estrangeiro se arrisca em nosso país. Além dos aspectos da segurança pessoal propriamente dita (que nem vou me aprofundar), o fato é que o ambiente de negócios é muito complicado em nosso país: tudo é muito difícil, a Justiça é muito ineficiente, e os homens de negócios do Brasil são verdadeiros predadores econômicos. Ninguém entende direito quais são as regras corretas para fazer negócios no Brasil (nem nós, os nativos!); se alguém lhe passa a perna, você não tem a quem recorrer; e tudo isso facilita o trabalho dos mal intencionados. Ah, que bom que você vai fazer sua formação nos EUA, né? Afinal de contas, lá as pessoas são honestas, a Justiça funciona, e não há risco de te passarem a perna, não é mesmo?

Pois é… Muita gente acredita nisso, mas o fato é que também tem muito malandro nos EUA, e lá também existem arapucas para pegar os mais ingênuos. E, embora a Justiça americana seja muito mais eficiente que a nossa, há sempre o efeito “touro no pasto do vizinho é vaca” (como se diz na minha terra), ou seja: sendo você um não-nativo, o tratamento legal que lhe será dispensado jamais será o mesmo que um cidadão americano desfrutará nos EUA. Por isso, quando você for fazer negócios com uma escola de aviação americana, não baixe a guarda: cheque as informações, exija garantias, não aceite efetuar elevados pagamentos adiantados, e tudo o mais que você faria se a escola fosse brasileira. No post com “dicas do leitor” citado no início deste artigo, há informações preciosas quanto a este aspecto. Não deixe de lê-lo.

Riscos financeiros e as outras “surpresas”

Todo projeto complexo e de longo prazo acaba custando mais que o planejado. O caso clássico é o da construção ou reforma de um imóvel, que pode ser considerado um grande sucesso se o orçamento estourar em até 30% da estimativa inicial (mas quase sempre passa dos 50% de acréscimo). Isso acontece não só por deficiências de planejamento e por dificuldades inesperadas enfrentadas no decorrer da obra, mas principalmente pelo “efeito já que”. Por exemplo: “já que estamos trocando o piso do banheiro, por que não substituirmos também a pia, a privada e o bidê?” – e de “já que” em “já que”, o orçamento explode. No processo de formação aeronáutica no exterior, acontece a mesma coisa, e pelos mesmos motivos: planejamento deficiente, fatos inesperados, e “efeito já que”.

Quando uma pessoa avalia a vantagem econômica de voar no exterior, seu cérebro se concentra na variável “preço da hora de voo”, e todo o resto acaba sendo relegado a um segundo plano. Ocorre que, para começo de conversa, trata-se de um negócio internacional, o que significa que há um risco cambial inerente, e se a pessoa não comprar todos os dólares antecipadamente, ela ficará exposta às flutuações da moeda estrangeira que todo importador sofre. Depois, há a necessidade de levantar todos os custos que realmente ocorrerão na estadia no exterior, não só o gasto com horas de voo na aviation school: hospedagem, alimentação, transporte, lazer, telecomunicações (celular, internet), taxas… Conversando com que já fez sua formação na mesma localidade, dá para levantar com grande detalhe todos os aspectos para um bom planejamento.

E os imprevistos? Ora, se são imprevistos, não há como estimá-los, é óbvio; mas e se você escorrega no banheiro e quebra um braço, como fica? Então, veja quanto custa um seguro-saúde temporário, e se possível incorpore-o ao seu orçamento. Tente fechar todas as possibilidades de imprevistos, porque algumas janelas sempre ficarão abertas, e estas já serão suficientemente grandes para estourar seu orçamento – por exemplo: multas de trânsito ou defeitos no carro (a maioria dos estudantes compra um carro usado para o período de instrução), com potencial para causar um rombo de vários milhares de dólares na sua estimativa.

Mas nada se compara ao “efeito já que” para quem está no exterior. Já que você está na Flórida, por que não ir para a Disneyworld com a galera no final de semana? Já que você está num grande centro de aviação, por que não aproveitar para fazer um curso de avião anfíbio? Já que os equipamentos eletrônicos são bem mais baratos aí, por que não comprar um iPad3 que está em promoção na BestBuy? E quando você percebe, meu amigo, sua formação nos EUA, que você achava que iria sair quase a metade do preço da brasileira, já custou o dobro. Fique esperto!

Concluindo

Pessoal, eu não quero acabar com o sonho de ninguém. Se eu tivesse as condições certas, eu também gostaria de ter feito minha formação nos EUA, um país que conheço bem, admiro e respeito. Só que não é para todo mundo que faz sentido ir voar nos EUA; na verdade, a maioria das pessoas ficará melhor voando no Brasil, apesar de tudo. Por isso, analise com muito cuidado – e, principalmente, com a cabeça muito fria – a possibilidade de realizar sua formação aeronáutica nos EUA. Pode ser que para você seja uma boa alternativa, mas há grandes chances de que as vantagens iniciais, quando pesadas contra as desvantagens observadas depois, apresentem um saldo negativo na linha final. Neste caso, tenha a coragem de desistir do projeto, e não insista num empreendimento que você já julgou desaconselhável, mas que insiste em prosseguir por causa do “sonho”. Mas se você concluir que é uma opção viável, vá em frente e boa sorte!

Raul Marinho. 

Alexandre Sales
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