Formação de Piloto Comercial 03

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Meu Primeiro No-Go

Essa é a estória do meu primeiro No-Go*, em um voo solo e do que isso significou para mim.

Sempre tive dificuldade em me expressar, quando em voo (ou antes dele), me sentia desconfortável com uma situação qualquer. Situações estas, tais como, o nível de óleo meio litro abaixo do máximo (e nenhum frasco para completa-lo), a falta de marcação de “corrimento” entre um pneu e sua flange, baterias “suadas”, termostatos de óleo inoperantes, e por ai vai.

 Frases como as seguintes, ditas por alguns poucos (entre os vários instrutores que tive) me impeliam a prosseguir:

– “Isso é besteira”.
– “Vamos assim mesmo, é um voo rápido e local”.
– “Na próxima revisão a gente reporta isso”.
– “Fazemos esse voo e paramos o avião depois dele”.

Eu sabia que essa era uma lição que precisava aprender. Mas não sabia como. Se era justamente o instrutor que dizia para prosseguirmos, quem era eu para dizer que não iria. O cara tinha 10 ou 100 vezes mais horas de voo do que eu. Devia ser frescura minha.

Felizmente, até hoje, foi só isso. Nunca passei por nenhum susto, e problemas mais graves que reportei foram abortados por esses mesmos instrutores. 

Mas ainda não sabia o que eu faria quando isso realmente importante acontecesse e em que eu fosse realmente o piloto em comando, sem mais ninguém para interferir na minha avaliação das variáveis e decisão de voar ou não.

Uma vez concluído o meu PP, e voando as horas de PC, tive a oportunidade de começar a fazer voos solo com mais frequência. Naturalmente, para quem praticamente quase sempre tinha voado com instrutores no banco de trás, ficava imaginando quando eu seria testado pelos eventos probabilísticos. Essa hora um dia iria chegar, era questão de tempo. E esse dia chegou!

Era a 2ª semana de Janeiro de 2013. Como a maioria das escolas, esta em que eu estava voando havia parado para recesso das festas de fim de ano. O avião em que eu iria voar estava parado a praticamente 1 mês.

Eu seria o primeiro a voa-lo depois desse tempo todo. Seria um voo solo (não havia motivos para ser diferente). Tiramos  o avião do hangar, abastecemos, fiz toda a inspeção pré-voo. Tudo pronto para o voo.

Acionei o avião, seguindo todos os procedimentos pós-acionamento, e após uns 3 minutos, iniciei o táxi para o ponto de espera. Chegando lá, prossegui com os testes, seguindo o checklist, que é basicamente o CIGEMAC** que aprendi para o AeroBoero. Ao chegar ao teste de Motor, um fato novo (para mim) aconteceu.

O teste de um dos magnetos apresentou queda de 300 RPM (o máximo permitido era de 150 RPM). De início, não acreditei no que vi, e achei ter deixado a manete na posição errada antes de começar a troca de magnetos. Repeti o procedimento. Novamente menos 300 RPM. Repeti mais 2 vezes. Perdendo sempre as mesmas 300 RPM.

Ai lembre de um voo que fiz com Paulo Neto, um dos melhores instrutores teóricos do ACPE que tive o prazer de conhecer. Num dos voos feitos com ele em um avião particular, um Cessna 172, ouvi pela primeira vez sobre a “sujeira” que a mistura rica pode eventualmente deixar nas velas. De início não dei crédito ao que julgava ser um mito.

Como tinha intimidade com ele, levantei essa suspeita. Qual foi minha surpresa quando ele me sugeriu testarmos se isso era fato ou não. De cara não imaginei como fazer isso. Mas ele, piloto já bem experiente, e ainda médico, com sua formação acadêmica, usou o que eu havia aprendido, mas raramente havia posto em prática. Realizou um experimento!

Primeiramente, ele fez o teste como eu havia aprendido no M do CIGEMAG. Ao testar o motor, aplicar a potência de 1800 RPM, testar os magnetos, e somente depois disso, reduzir a potencia para os 1500 para o teste de corte de mistura.

Anotamos as quedas de RPM, e depois invertemos a ordem dos testes. Uma vez tendo feito os cortes de mistura, voltamos a potência aos 1800 RPM, e ai testamos novamente os magnetos. Eureka! As quedas foram de 50 a 75 menores do que no primeiro teste.

Ele conseguiu me provar, com um pouco de inteligência e um experimento simples de que sim, a mistura realmente pode “sujar” temporariamente as velas. 

Um fato que me deixou pensativo foi o seguinte. Se a queda é menor invertendo a ordem dos testes, porque os checklists não seguem essa ordem? Depois de um tempo pensando, cheguei a conclusão de que, se mesmo com as velas “sujas”, a queda for pequena, com elas “limpas” o efeito será ainda menor. Melhor para a segurança de voo que seja assim.

Terminado esse flashback, tentei reproduzir o mesmo fenômeno naquele momento, ali, sozinho. Agora iria conseguir resolver o problema das 300 RPM faltantes. Será? Nada feito. As quedas de RPM continuaram. Nem essa “limpeza conseguiu resolver o problema”. Ao total, devo ter feito uns 8 testes consecutivos.

Quais eram as minhas possibilidades? Prosseguir o voo, já que estava sozinho, sem o peso de um 2º tripulante, e essa RPM poderia não me fazer falta. Ou cancela-lo ali mesmo. Fui posto em teste, não por um instrutor, mas por mim mesmo. Iria eu atentar contra minha própria segurança? Ao pensar isso, cancelei o voo.

Fiz um 180º e voltei para a porta do hangar. Cortei o motor, realizei o check de abandono, e desci para explicar ao instrutor que havia me liberado todo o ocorrido.

Depois de me ouvir pacientemente, ele mesmo decidiu testar o avião. Pensei eu: Será que nas mãos dele, o problema vai voltar a ocorrer? Vou passar de desatento ou distraído? Fiquei tenso por alguns instantes.

Ele começou a testa-lo ali mesmo. Os quase 135 HP de um PA-18, a 1800 RPM de perto são bem impressionantes para quem está do lado de fora. Pensava eu que ele havia conseguido testa-lo com sucesso.

– Droga, será que fui eu que errei algo?

Depois de alguns segundos, ele acena para o instrutor-chefe, que se aproxima e começam a juntos avaliar a situação. Logo chega um dos mecânicos, e a junta-mecânica inicia um debate. Eu tenso, começo a ver que realmente fiz a coisa certa. Eles desligam o motor, e o avião vai para a oficina.

Nessa hora, alguma coisa mudou em mim. Um fato simples como esse, me deu confiança. Mais do que manobras feitas corretamente, mais do que meu voo de cheque. Meu primeiro No-Go. Em outras situações, eu havia ficado chateado por ter dado viagem perdida, ao sair de casa e não ter voado. Mas hoje foi diferente. Não ter voado foi um prazer inesperado. Nunca imaginei isso.

Um chavão na aviação (ainda vou falar sobre eles no futuro) havia se provado verdade (ou uma parte dele):

– É melhor estar no chão querendo voar, do que voando e querendo estar no chão.

*No-Go: Expressão em inglês, que pode ser traduzida como “Não ir”. Neste contexto, se aplica para eventos que devem ser motivo para o cancelamento de um voo

**CIGMAC: Sigla usada comumente em instrução, para lembrar a ordem de testes no ponto de espera. A saber, C de Comandos, I de Instrumentos, G de Gasolina, M de Motor, A de Ar de aquecimento do carburador e C de Cabine.

Até a próxima, pessoal.

Pedro Santos
pedropk@gmail.com

Renato Cobel
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