Segurança de voo na instrução

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Coluna de Coaching de Formação Aeronáutica – Raul Marinho / Blog Canal Piloto
Tema da semana: Segurança de voo na instrução
 
Caros (futuros) aviadores do Canal Piloto, Oscar Lima Alpha!
 
Nesta semana, nós vamos tratar do assunto mais importante da aviação como um todo e da formação aeronáutica em particular: segurança de voo. Sim, porque não vai adiantar nada você ter o dinheiro para pagar as horas de voo, estar aprovado nos exames teóricos, práticos e médicos, ter ICAO-6, PLA teórico, Jet Training, MLTE, IFR, etc., se… Estiver morto! Então, antes de qualquer coisa, você tem que se preocupar com a segurança do seu voo, qualquer que seja ele. E, que nossas mães, esposas, etc. não nos ouçam, mas a instrução aeronáutica é particularmente complicada neste sentido. É na instrução que os erros de pilotagem são mais passíveis de ocorrerem, são os aviões de instrução os mais vulneráveis à meteorologia desfavorável, sem contar que nem sempre a manutenção é confiável em alguns aeroclubes/escolas. Para piorar, quem está aprendendo a voar tem muito poucas condições de discernimento para poder avaliar se o que está fazendo faz sentido ou o está colocando em risco, e ele depende da capacidade de julgamento do seu instrutor na maioria das vezes – instrutor que, frequentemente, possui menos de 200h de voo, aí já viu, né? Sem contar que, em parte dos voos de instrução, o aluno está sozinho no cockpit, aí nem o instrutor meia-boca existe! Por isso, eu acho impressionante como são relativamente raros os acidentes na instrução aeronáutica.

Na minha instrução de PP e PC, eu passei por duas situações de stress que, afortunadamente, não evoluíram para algo mais sério. Algum tempo depois de elas ocorrerem, eu fiz um curso de CRM (Cockpit Resources Management, uma técnica de segurança de voo com ênfase na coordenação de cabine), que me permitiu discutir com profundidade essas situações com os instrutores do curso (comandantes muito experientes e proficientes no assunto de segurança de voo), e pude analisá-las a fundo. Aquele curso mudou completamente minha maneira de pensar a segurança de voo, e com base nele eu escrevi um post sobre esses quase-acidentes por que passei e suas respectivas análises no meu bloguinho, no post “Evitando problemas nos voos”. Considero aquele, sem falsa modéstia, o melhor artigo do meu blog até agora, e na coluna de hoje eu vou reproduzi-lo quase na íntegra. Espero que vocês gostem. Vamos a ele:
 
Evitando problemas nos voos
 
Quando se está em treinamento para ser piloto, é muito fácil entrar em situações complicadas, que podem se transformar numa emergência ou num acidente. São pequenos detalhes, “micro-vacilos” que acabam gerando grandes perigos, e saber detectá-los não é fácil. Eu passei por duas destas situações que, felizmente, não chegaram a ter grande gravidade, mas que facilmente poderiam. Vou descrevê-las para, após, comentar o que pode ser feito para evitar esse tipo de perigo.
 
Situação #1 – Rajada de vento de cauda na decolagem
 
Era meu sexto voo do treinamento de PP, no Aeroclube de São Paulo, e o primeiro em que iria praticar o famoso TGL (ou “toque-e-arremetida”, que é quando o piloto pousa e decola em sequência). A missão consistia em decolar o Cherokee-140 matrícula PT-IZO utilizando a cabeceira 30 do Campo de Marte, manter a proa do Través do Jaraguá, curvar a direita no 2º pedágio da Rodovia dos Bandeirantes em direção a Atibaia, fazer uns 2 ou 3 TGLs na pista de terra do aeroporto daquela cidade, e retornar para Marte – uma missão bem popular no ASP. Meu instrutor naquele dia era o Kowalsky, um dos mais experientes do aeroclube, e as condições meteorológicas eram mais ou menos as seguintes: pressão ligeiramente abaixo da pressão-padrão de 1013,2hPa, temperatura alta (uns 35 graus, às 14:00h locais), e um ventinho de través de cerca de 8kt soprando do Norte, atingindo a direita do avião na decolagem. Vale lembrar que decolar da pista 30 do Campo de Marte é crítico, pois implica em voar para cima do Morro da Casa Verde, que fica bem no eixo de decolagem.
 
Feita toda a coreografia pré-voo (inspeção, fonia, cheques, briefings, testes, etc), chegamos ao ponto de espera da cabeceira 30, e nos posicionamos logo atrás de um Seneca, tendo um outro Cherokee do aeroclube atrás da gente. Alguns instantes após a decolagem do bimotor, a torre nos autoriza a alinhar e decolar sem paradas, que é o que faço sob a supervisão do meu instrutor. Atingindo a velocidade de rotação, puxo o manche e inicio a subida, mas assim que cruzamos a cabeceira oposta, começam os problemas. Do nada, surge uma rajada de vento de mais de 20 nós, que atinge o avião quase de cauda, pela direita, e pela primeira vez eu ouço a frase “tá comigo!”, dita pelo instrutor, que significa o seguinte: “agora você é passageiro, fica na sua, e vê se não atrapalha”. O Kowalsky estava num impasse: se mantém a proa, podia ser que não conseguíssemos altura para superar o Morro da Casa Verde, pois o vento quase de cauda drenava nossa sustentação; e se curvássemos à esquerda, em direção à calha do rio Tietê, nós evitaríamos o morro, mas aí o vento nos pegaria perfeitamente de cauda, e nós poderíamos estolar e cair. Foram alguns segundos de briga do instrutor com o manche, os pedais, e a alavanca do flap, e não teve jeito: fomos para cima do morro, que era a opção menos pior. O resultado foi que lambemos o morro de tal forma que, em um dado momento, eu olho para baixo e vejo uma televisão pela janela de um sobrado, e consigo identificar a figura do apresentador do “Vídeo Show” (programa que passa na TV Globo naquele horário) na tela da TV. Passamos a uns dois metros do topo daquele sobrado.
 
Para ser sincero, eu só percebi a gravidade do ocorrido quando olhei para o Kowalsky e notei sua expressão e palidez. Minha inexperiência era tão grande naquela época, que eu estava achando que aquilo tudo era normal… Mas o fato é que eu só estou aqui escrevendo este texto porque o instrutor era um profissional como o Kowalsky, se fosse um INVA recém formado, ou se eu estivesse em voo solo, seria muito difícil evitar um acidente grave, já que não havia a mínima chance de fazer um pouso forçado naquele local.
 
Situação #2 – Pane parcial na decolagem
 
Estava fazendo meus voos de navegação do PC no Aeroclube de Campinas, e naquela tarde eu iria até São José dos Campos comandando o PT-ORK, um Cessninha C-150 fabricado em 1967, mas com a manutenção em dia. Naquela época, o posto de abastecimento da Petrobras sediado no Campo dos Amarais estava em reformas, e nós tínhamos que abastecer os aviões no aeroporto de Americana, a 10 minutos de voo de Amarais. Por isso, o avião estava bastante leve, inclusive porque o instrutor que iria me acompanhar, o Lee, era um rapaz bem magro. Aquilo era providencialmente bom, pois aquele avião tinha um desempenho muito ruim, e era difícil subir com 500 pés por minuto, geralmente ficava-se em 300-400 pés/min no máximo. Outro detalhe era que o avião estava queimando muito óleo, praticamente um litro por hora de voo, razão pela qual levávamos quatro litros extras nos vôos de navegação. Mas, de qualquer forma, não havia reporte de panes naquela aeronave, e as revisões mandatórias estavam dentro dos limites recomendados pelo fabricante.
 
O avião estava sendo utilizado por uma outra dupla instrutor+aluno,que estava praticando toques-e-arremetidas na pista de Amarais,  o que atrasou o nosso voo. Mas assim que eles retornam ao pátio, realizamos a inspeção e saímos, já que o plano de voo estava perto de ter a validade vencida. Naquele dia, o avião estava particularmente ruim, e a subida após a decolagem mal chegava a 300 pés por minuto, por isso demorou uns dois minutos para atingir os 500 pés de altura, quando executei o cheque pós-decolagem. E, uns 30 segundos após este cheque, o motor do avião começa a falhar, tossir, trepidar; era o começo da pane. Olho para o painel, e todos os instrumentos estão na faixa verde, mas o tacômetro oscila muito na faixa dos 1.700RPM (deveríamos estar perto dos 2.500RPM). Logo antes de decolar, havia cantado o briefing de decolagem, em que afirmara que, se ocorresse uma pane a até 800 pés de altura, deveria pousar em frente, e acima disso avaliar o retorno. Estava a 600 pés, mas a pane era parcial, e estava em cima da Rodovia Dom Pedro I, num lugar cuja única possibilidade de pouso de emergência era no “facão” entre as duas pistas da auto-estrada – provavelmente não nos machucaríamos seriamente, mas iria quebrar o avião. Meio na dúvida, falei para o instrutor: “Vamos voltar?”; e ele: “Vamos! Faz a fonia, monitora o painel, checa o que der, e deixa que eu voo o avião”.  Não tinha ninguém na fonia (em Amarais, naquela época, não existia nem base de rádio, era só coordenação, e não havia ninguém voando no momento), e os instrumentos teimavam em mostrar tudo OK, apesar da perda de potência. Como decolamos contra um vento de cerca de 10 nós, no retorno tivemos este vento de cauda, o que neste caso foi favorável, pois nos fez chegar mais rápido à pista. Quando já estávamos nos preparando para pousar, a pane evoluiu para total, mas naquele momento já estávamos com o pouso garantido (a bem da verdade, chegamos até um pouco alto, e tocamos depois do meio da pista). E como o aeroporto estava deserto, tivemos que empurrar o PT-ORK até o hangar. Com as pernas bambas, é claro.
 
Embora não tenha havido maiores conseqüências, a situação vivida poderia ter sido bem mais complicada se a pane ocorresse um minuto antes – digamos, quando estivéssemos a 200 ou 300 pés de altura, quando não haveria alternativa que não um pouso forçado –, ou algum tempo depois, quando estivéssemos muito longe e não fosse mais possível retornar. O que nos salvou foi o timing perfeito da pane, no fim das contas. Todos os parafusos de fixação da carenagem do motor caíram, e esta só não saiu voando por sorte, o que mostra a intensidade da trepidação que ocorreu no motor. Apesar disto, o pessoal da manutenção não identificou nada de anormal no avião, e atribuíram o problema a uma suposta contaminação do combustível – o que é muito difícil, não só porque eu drenei os tanques e a linha corretamente, mas também porque o avião voou por mais de uma hora sobre o aeródromo imediatamente antes do voo.
 
Comento
 
Em nenhum dos casos, houve erro ou culpa por parte dos instrutores ou dos aeroclubes, por mais que agora, muito tempo depois, possa parecer o contrário. Não foi possível trocar os nomes dos aeroclubes, senão o relato não faria sentido, mas os nomes dos instrutores foram propositalmente trocados, de qualquer forma. Bem, mas vamos à análise propriamente dita.
 
Os acidentes na aviação sempre começam de forma despretensiosa, até porque se os sinais fossem muito óbvios, ninguém seria trouxa de embarcar. No caso do Campo de Marte, houve uma decolagem sem reporte de problemas minutos antes, e a torre monitora o vento consistentemente. Quem é que poderia adivinhar que uma rajada de vento surgiria do nada, bem no momento mais crítico da decolagem? E no caso da pane, todos os parâmetros do fabricante estavam sendo respeitados em termos de revisões, e o avião acabara de voar uma hora sem nenhum reporte, como é que a pane foi surgir logo em seguida?
 
Lembram-se do acidente com o avião da TAM em Congonhas (2007)? O reverso estava pinado (inoperante). “Ah, mas o fabricante permite que se voe com o reverso pinado!” A pista de Congonhas estava sem o grooving. “Ah, mas Congonhas ficou anos sem o grooving, e nem por isto é um aeroporto perigoso”. Está chovendo. “Ah, mas…” Ok, sempre vai haver uma justificativa para ignorar um pequeno agravante de risco, e estes eventos, isoladamente, não são, de fato, perigosos. Mas, se temos reverso pinado E falta de grooving E chuva… Será que não seria o caso de alternar para Guarulhos? Só por precaução? As causas daquele acidente até hoje estão meio nebulosas, e pode até ser que ele tivesse ocorrido mesmo com o reverso funcionando e a pista com grooving e seca, nunca se vai saber. Mas uma coisa é certa: se o comandante tivesse decidido alternar para Guarulhos, o acidente não teria ocorrido, e essa opção existia de fato.
 
Na minha ocorrência no Campo de Marte, foi mais ou menos a mesma coisa. O avião tem baixa performance? “Tem, mas todo dia há dezenas de decolagens de aviõezinhos assim no Campo de Marte sem problemas.” As condições meteorológicas de pressão e temperatura estão desfavoráveis? “Sim, assim como em grande parte dos dias do ano.” O vento não está desprezível? “Ah, oito nós não é exatamente um furacão, né?” Mas, espere um momento… O vento está soprando exatamente de través pela direita, sendo assim tanto faz se estiver de través pela direita ou pela esquerda, não é verdade? Então, que tal pedir à torre para decolar da pista 12? É um incômodo, vai atrasar uns 10 minutos do voo, mas se isso tivesse sido feito , poderia ter vindo a rajada de vento que fosse que a gente decolaria sem problemas. Aliás, foi o que fez o Cherokee que vinha logo atrás, mas o instrutor daquele avião viu o aperto por que nós passamos, e a decisão foi bem mais fácil para ele. O que eu aprendi com esta ocorrência e gostaria de passar para os leitores é que, se houver alguma coisa a ser feita que amplie a segurança do voo, nunca deixe de fazer, mesmo que seja incômodo, chato, desagradável, custoso. E mesmo que o comandante, instrutor, dono do avião, etc, não achar necessário, ou não perceber a possibilidade, não deixe de falar, e insista na alteração. Também aprendi que pequeninos agravantes de risco, quando somados, tomam uma dimensão desproporcionalmente grande. É mais ou menos o seguinte: um milímetro é um milímetro; mas um milímetro mais um milímetro não dá dois milímetros, e sim dois metros; e um milímetro mais um milímetro mais um milímetro dá três quilômetros, e não três milímetros. Essa é a matemática esquisita do risco.
 
O caso da pane em Campinas é mais simples de avaliar o erro, embora também seja complicado de evitá-lo. Um motor que queima um litro de óleo por hora não é, por definição, confiável. Hoje eu percebo que não se pode desprezar uma evidência tão forte quanto esta, mas na época eu não percebi isso porque “está dentro do prazo da revisão”, “o motor nunca deu problema”, esse tipo de coisa que acaba tirando nossa atenção para o óbvio. E o motor não começa a queimar um litro de óleo por hora de uma hora para outra: começa queimando 10ml por hora, depois 20, 50… E quem usa o avião vai completando o nível, voando, não ocorre nenhuma pane, e as pessoas vão se acostumando com o problema. Some-se a isso uma escala apertada, muitos alunos e poucas aeronaves, e o problema passa despercebido, mesmo sendo tão evidente.
 
Aqui, não tem muito mistério: surgindo uma evidência tão forte quanto esta, de um motor que queima muito óleo em um avião com desempenho muito aquém do esperado, não voe e ponto final. O que é difícil, na verdade, é não ter seu julgamento prejudicado pelo fato de que “todo mundo está voando nesse avião, e ninguém teve problemas até agora”. Pode ser que todo mundo que voava naquele avião pensasse, individualmente, que aquilo não estava certo, mas quando essas mesmas pessoas viam as outras voando nele e não tendo problemas, elas adquiriam uma certa “confiança coletiva” na máquina. Quando você está no calor da batalha, é facílimo se iludir. Por isso, tome cuidado com esses “elefantes invisíveis” que rondam nossos aeroclubes.
 
Quem já está acostumado com os meus textos sabe que eu não sou o dono da verdade, nem tenho pós-graduação em segurança de voo ou coisas desse tipo. O que eu tenho é minha experiência recente em treinamento aeronáutico, que procuro passar da melhor maneira possível. Aos mais experientes, especialistas, instrutores, peço que não deixem de comentar, criticar, complementar o post. Ao pessoal do Aeroclube de Campinas, peço desculpas se pareceu que eu estou criticando a manutenção da instituição. Não é esta a minha intenção, e pode ser inclusive que a pane no Cessninha aconteceu por gasolina contaminada mesmo – uma sujeira que se deslocou naquele momento, vai saber. Mas o fato é que o avião estava com problemas evidentes, mesmo que estes não tivessem relação direta com a pane, e a minha intenção é alertar ao leitor sobre este tipo de situação, que não acontece só no ACC.
 
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Bem, pessoal, espero que as informações acima sirvam para, de algum modo, melhorar a segurança dos voos de vocês. É preciso ficar atento, aviação não é brincadeira – e ao contrário da maioria das profissões, “aprender errando” não é uma opção para pilotos. Quando vocês forem voar em alguma companhia aérea, num táxi aéreo, ou mesmo em uma aviação executiva mais estruturada, vocês terão que fazer, obrigatoriamente, o curso de CRM. Mas se vocês tiverem a oportunidade de fazer este curso antes disso, eu recomendo fortemente. Eu fiz o meu curso de CRM durante a LABACE (uma feira de aviação geral, promovida anualmente em São Paulo) em 2010, num evento promovido pela faculdade Anhembi Morumbi e a consultoria First Flight, e me custou R$200,00. Valeu muito a pena.
 
Um grande abraço a todos, e até a semana que vem!
Alexandre Sales
Redes
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