Aviação de rosca

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Coluna de Coaching de Formação Aeronáutica – Raul Marinho / Blog Canal Piloto
Tema da semana: Aviação de rosca
 
Caros leitores do Canal Piloto, Oscar Lima Alpha!
 
A gente sempre fala aqui sobre a aviação como se pilotar aviões fosse a única possibilidade para um aviador – coisa que, como todo mundo sabe, não é. O mundo da aviação é vasto, mas em termos profissionais, a possibilidade mais concreta fora da asa fixa (aviões) são os helicópteros, também conhecidos como “aeronaves de asa rotativa” ou “aviação de rosca” (o termo que eu mais gosto, a propósito). Curiosamente, no meu bloguinho, um dos posts mais acessados é justamente o único em que eu abordo o tema da asa rotativa (este aqui), e um percentual desproporcionalmente alto das perguntas que recebo se refere aos helicópteros – daí minha impressão de que esse tema é de interesse de muita gente. Por isso, na coluna desta semana, vamos tratar desta modalidade da aviação, que vem ganhando importância ano após ano, e hoje possui perspectivas tão boas ou até melhores que a aviação de asa fixa.
 

Pilotar helicópteros tem muita coisa em comum com a operação dos aviões, mas muita coisa é diferente também, não só no manejo do equipamento em si, mas especialmente no que se refere às questões profissionais e, digamos, “estruturais” do negócio. A principal delas é que não existe linha aérea que opere helicópteros, isto é: em relação à asa rotativa, não dá para comprar uma passagem na loja, fazer check in no balcão, e embarcar num voo como a gente faz para ir de avião de São Paulo ao Rio, por exemplo. E se não existe linha aérea de helicópteros, tampouco há piloto de linha aérea de helicópteros (embora exista a licença de PLA-H, mas isso é outra história), o que faz da aviação de rosca uma modalidade 100% “aviação geral”: um PCH, ou voa para um proprietário (“aviação executiva”), ou voa para uma empresa de táxi aéreo, ou dá instrução.

Mas se não existe linha aérea para a asa rotativa, existe um negócio exclusivo para helicópteros: as plataformas de petróleo. Na prática, voar nas plataformas para um PCH equivale a voar em companhias aéreas para um PCA: além de oferecer uma remuneração mais ou menos equivalente, é o segmento que mais cresce, e é o objetivo da maioria dos pilotos recém-formados. Também, pudera: o regime de trabalho nas plataformas é bem interessante (o chamado “regime 15 X 15”, em que se trabalha 15 dias seguidos, e depois o piloto fica 15 dias de folga), com um salário inicial na casa dos 5 dígitos. E as perspectivas de emprego, após a descoberta do chamado pré-sal (os campos de petróleo no litoral sul do Rio de Janeiro e norte de São Paulo) são espetaculares: para se ter uma idéia da importância disto para a aviação de rosca, somente devido à demanda do pré-sal, a necessidade de pilotos de helicópteros do Brasil deverá dobrar nos próximos 5 anos.
 
Bem, mas como tornar-se um piloto de helicópteros?
 
O curso teórico de Piloto Privado de Helicóptero-PPH é idêntico ao de Piloto Privado de Avião-PPA nas disciplinas de Meteorologia e Navegação; quase igual em Regulamentos (difere uns 5%, se tanto); cerca de 50% igual em Conhecimentos Técnicos; e completamente diferente na disciplina de Teoria de Voo. Quase a mesma coisa acontece no curso teórico de Piloto Comercial de Helicóptero-PCH em relação ao Piloto Comercial de Avião-PCA, com a diferença que, para a asa fixa, existe toda a parte de Voo por Instrumentos-IFR na disciplina de Navegação, que não é cobrada no curso de PCH.
 
Já os cursos práticos para pilotos de helicópteros têm várias diferenças importantes em relação aos cursos de avião:
    • Na asa rotativa não existe o  conceito de CLASSE (MNTE/MLTE ou MNAF/MLAF) que a asa fixa adota:  todo helicóptero é considerado TIPO. Por isso, é necessário  fazer a prova de TIPO na ANAC para poder pilotar qualquer aeronave  de asa rotativa (as de instrução, inclusive).
  • Como não há a habilitação de  IFR dentro do curso de PCH, e tampouco existe a CLASSE MLTE de  helicópteros, toda a instrução de PPH e PCH pode ser realizada no  mesmo equipamento. Na verdade, só existem dois* modelos de  helicópteros utilizados na instrução de PPH/PCH no Brasil: o  Robinson 22 (R-22) e o Schweizer 300, sendo que 90% ou mais dos  equipamentos disponíveis nas escolas são do tipo R-22.
(*Obs.: Existe uma escola com um helicóptero do modelo Esquilo, mas ele praticamente não é usado na instrução primária de PPH/PCH; e no Rio, existe um R-22 equipado com instrumentos para treinamento IFR “sob capota”, mas novamente não é um equipamento normalmente utilizado na instrução primária – e também eu desconheço qual escola o possui).
    • Na maior parte dos casos, a  instrução de PPH/PCH é oferecida em escolas particulares, não em  aeroclubes, que são a regra no caso dos aviões. E, em geral, são  escolas pequenas, com poucas aeronaves, então fique ligado: se você  comprar um pacote de horas muito grande, e um helicóptero da escola  se acidentar ou tiver que ir para a manutenção, você poderá  enfrentar sérios problemas – logo, evite adquirir pacotes com  mais de 10h, mesmo que a vantagem financeira de pacotes maiotres  seja significativa.
  • O requisito de experiência para o  cheque de PPH é de 35h (igual ao de PPA); só que, no caso dos  helicópteros, a maioria dos alunos checa ao atingir as 35h mínimas  (diferente dos PPAs, que frequentemente checam com 40h-45h ou mais);  já para o PCH, o requisito cai para 100h em escola homologada (são  150h para PCA), e 150h em aeronave particular (são 200h para PCA).
  • O custo da hora de voo em  helicópteros varia ao redor de R$700, mais que o dobro da hora de  voo básica em avião. Porém, como o aluno de PCH não precisa voar  em aeronaves homologadas IFR ou multimotoras, além do citado menor  requisito de experiência, o custo de um curso completo de PPH+PCH é  equivalente ao de um curso de PPA+PCA com MLTE e IFR, cerca de  R$70mil.
Além disso, para um PCH não há a necessidade dos “penduricalhos de currículo”: o Jet Training não existe, a certificação em inglês ICAO é dispensável, e a aprovação na banca online de PLA-H não é exigida. Todavia, é interessante que o PCH faça o curso teórico e o treinamento em simulador IFR (em avião mesmo), que seria o único “penduricalho” aplicável à asa rotativa. Isso acontece porque, no Brasil, não existe nenhuma escola com aeronave homologada IFR para cheque (incrível isso, não!?), e checar em aeronave particular é inviável na prática (a hora de voo de um equipamento desses sai por R$3,5mil/h, no mínimo). Então, as empresas que recrutam pilotos para operação IFR-H (principalmente as que operam nas plataformas de petróleo) deram esse jeitinho para selecionar candidatos: exigem um conhecimento mínimo de IFR “genérico”, e dão o treinamento prático de IFR-H elas mesmas. Uma outra opção é fazer o treinamento IFR-H nos EUA, e depois convalidar a habilitação no Brasil – uma boa alternativa, a propósito.  E para que um PCH se torne instrutor (INVH, no caso), são necessárias somente 10h de treinamento no curso prático, além do curso teórico presencial obrigatório e a banca da ANAC, igual ao INVA. 
 
Fora essa questão do IFR-H, não há grandes complicações para a formação aeronáutica em asa rotativa, comparativamente aos aviões – pelo contrário, em muitos aspectos a instrução em helicópteros é até mais simples. A grande dificuldade que existe na carreira de um PCH é o raio da “barreira das 500h” (quem tem menos de 500h de voo de experiência tem muitas restrições para voar), o que torna o início da carreira de um PCH muito mais difícil que o de um PCA. Essa barreira é aplicável, por motivos distintos, tanto à aviação executiva e táxi aéreo “de continente” (os táxis aéreos que operam fora das plataformas), quanto à operação nas plataformas de petróleo. No primeiro caso, a barreira decorre de uma cláusula imposta pelas seguradoras, que cobram prêmios muito mais elevados dos operadores que deixam que comandantes com menos de 500h pilotem suas aeronaves (isso quando elas simplesmente não aceitam fazer o seguro nestes casos); e nas plataformas, a restrição é fruto de uma cláusula da convenção coletiva de trabalho dos petroleiros, que exige aeronaves bi-turbinas, homologadas IFR-H (assim como a tripulação), que só se realizem voos diurnos, que o comandante seja PLA-H checado, e que os copilotos tenham um mínimo de 500h de experiência.
 
Isso produz um vácuo de possibilidades para “fazer hora” entre as 100h (quando o PCH se forma) e as 500h (quando ele se torna viável profissionalmente), que é difícil transpor. A quase totalidade dos helicópteros que voa fora do ambiente das plataformas é composta por equipamentos “single-pilot”, que dispensam a necessidade do copiloto; e mesmo que um candidato a copila se sujeite a trabalhar de graça, será difícil encontrar um comandante que o aceite, pois os helicópteros são equipamentos muito pequenos, em que cada assento disponível vale ouro. Assim, a principal estratégia utilizada pelos PCAs para engordar a CIV – voar de copila – fica complicada para os PCHs. Sobram, basicamente, as opções “marginais” da asa rotativa (vou explicar em seguida o que isso significa), e a instrução. No primeiro caso, voa-se muito pouco; e no segundo, o risco de acidente é elevado. Sentiram o drama do PCH iniciante?  
 
Existem algumas missões bem peculiares na asa rotativa – que eu chamo de “atividades marginais” não porque sejam criminosas, mas porque não se enquadram no quadro principal da aviação – que os PCHs recém-formados acabam desempenhando, como uma maneira de “fazer hora”. Uma delas é o que se conhece no meio como “car system”: dar apoio a empresas de segurança no rastreamento de veículos e cargas roubadas, ou em casos de roubos a bancos, caixas eletrônicos, postos de gasolina, etc; outra, é levar funcionários das empresas de distribuição de energia elétrica para inspecionar linhas de transmissão; e por aí vai. Esse tipo de trabalho é feito, geralmente, em aeronaves R-22 sem apólice de seguro (a não ser o seguro obrigatório, lógico), razão pela qual são muito disputados pelos PCHs novatos. Aí entra em ação a lei da oferta e da demanda, e a remuneração das atividades marginais é baixíssima. Alguns operadores da aviação executiva, especialmente os que utilizam helicópteros mais baratos (R-22/44 e JetRanger mais velhos, principalmente) também utilizam aeronaves sem seguro e, por isso, aceitam pilotos com menos de 500h de experiência.
 
A outra única opção que resta aos PCHs novatos é a instrução, que inclusive costuma pagar melhor que a asa fixa (tenho conhecidos que ganham R$50/h como INVHs, enquanto os INVAs ganham, em média, R$25-35/h), só que a instrução na asa rotativa tem a fama de ser uma atividade muito perigosa. O acidente clássico da instrução em helicópteros ocorre nos treinamentos de táxi, ou em voo pairado a baixíssima altura. O aluno, ainda aprendendo a lidar com o manche do cíclico, que é ultra-sensível no R-22 (e não é à toa que este equipamento é conhecido como o “helicóptero da Barbie”! – você já viu um de perto?), dá uma vacilada por causa do vento, ou simplesmente realiza um movimento um pouco mais brusco, e pronto: o helicóptero se inclina um pouco mais, a ponta do rotor principal toca o solo, e aí já era. Este tipo de acidente não costuma apresentar gravidade (eu, pessoalmente, nunca soube de alguém que tenha morrido ou se ferido gravemente numa ocorrência destas), e no fim das contas a instrução em asa rotativa nem é tão perigosa quanto dizem. Mas, se querem saber, eu não encararia ser INVH nem por todas as horas de voo do mundo!
 
Haveria, ainda, uma terceira opção para os PCHs recém-formados, muito popular nos anos 1970-80, que é pilotar na Amazônia. No livro do cmte Mansur (que vale muito a pena ser lido, a propósito – veja este link), ele relata como foi o começo de sua carreira, operando em clareiras no meio da mata fechada nos estados do Amazonas e do Pará. O problema é que, hoje, existem muito poucas oportunidades de voar na Amazônia para recém-formados, já que a maioria dos helicópteros voa a serviço da indústria do petróleo, e a mesma convenção coletiva que proíbe a contratação de novatos para as plataformas vale também para a operação na selva. Resumindo, para chegar às famigeradas 500h de experiência, não tem para onde correr: ou o novato vai levar vários anos pilotando pouquíssimas horas por mês nas atividades marginais; ou ele vai arriscar o pescoço dando instrução.
 
Mas, depois de passar esse período de provação, vale a pena. A pilotagem de helicópteros em si é bem mais interessante, desafiadora e divertida que a operação em aviões (pelo menos, foi a minha impressão nas poucas vezes em que tive a oportunidade de voar nesses equipamentos). Cansa muito mais (é bem mais difícil, essa é a verdade!), pois o piloto tem que interferir nos comandos o tempo todo (não é como no avião, em que o trabalho é concentrado nos pousos e decolagens), mas justamente por isso é mais divertido; sem contar que se voa muito mais VFR que no avião, e o visual é bem mais legal, pois o voo é a baixa altura. Fora isso, tem a questão do estilo de vida. Um piloto de helicópteros realiza a maior parte de suas missões em um raio de poucos quilômetros de sua base, o que o permite dormir em casa a maior parte das noites. Lógico que isso não se aplica a quem voa nas plataformas, mas mesmo para quem opera neste tipo de atividade, dormir 15 noites por mês em casa é algo que qualquer piloto de avião comercial sonha.
 
Por causa destas diferenças no estilo de vida, os pilotos de helicóptero têm muito mais facilidade para desenvolver outras atividades fora da aviação. Isto faz da profissão de PCH uma ótima opção para profissionais liberais (ex. advogados, consultores, etc.) e pequenos empresários que gostam de voar, e que querem ter uma fonte de renda mais sólida, mas ao mesmo tempo não querem abandonar alguma outra atividade que também lhes interessem. É o que eu falo sobre “atividades escaláveis X não-escaláveis”, neste post aqui, e neste também.
 
Finalmente, a pergunta que muita gente faz: voar de helicóptero é mais perigoso que voar de avião? Afinal de contas, “se o motor do helicóptero parar, ele cai como uma pedra, não é?”. Em primeiro lugar, o helicóptero não cai como uma pedra se o motor parar, não. A principal manobra que se treina nos cursos de PPH e PCH é a auto-rotação, que simula a perda do motor, e se houver altura e/ou velocidade suficiente, é possível realizar um pouso em total segurança. Depois, é o seguinte: se o equipamento estiver com a manutenção em dia, e o piloto respeitar todas as regras e recomendações de segurança aplicáveis, é mais provável morrer no trânsito, no trajeto de casa para o aeroporto, do que embarcado no helicóptero. O grande problema do helicóptero é que, na esmagadora maioria dos acidentes, nem o equipamento nem o piloto são homologados IFR, e mesmo assim se tenta voar “visumento” (sob regras visuais, mas em condições IFR), afinal de contas, “para que serve o GPS, não é mesmo?”. E é aí que, depois da nuvem, encontram-se a pedra… Mas fazendo tudo direitinho, o helicóptero é tão seguro quanto o avião.
 
Como a maioria aqui sabe, eu não sou piloto de helicóptero, embora tenha sido a asa rotativa que me atraiu para a aviação num primeiro momento. Depois de voar nos dois equipamentos, eu achei que o voo do avião tem mais a ver com a minha personalidade: ele é mais cerebrino, exige mais planejamento, as missões são mais complexas; enquanto que o voo do helicóptero é mais intuitivo, requer uma coordenação motora mais refinada, e tem a questão da barreira das 500h: como eu não sou a fim de ser INVH, iria gramar muitos anos até “virar gente grande” na aviação de rosca (e eu tenho 43 anos, não tenho tanto tempo assim para desperdiçar). Por isso, eu pretendo, num futuro próximo (depois de estabelecido na aviação de asa fixa), obter também a licença de PCH – e é sobre isso que eu gostaria de falar para encerrar a coluna.
 
Se você tiver as carteiras de PCA e PCH, suas chances na aviação são mais que dobradas. Eu conheço alguns pilotos nessa condição, e o que posso dizer é que todos eles estão muitíssimo bem colocados, e nenhum passou pelo desemprego, mesmo nos momentos de crise aguda na aviação. Isso por que, além de poder disputar uma vaga como PCA ou como PCH, também existem patrões que querem encontrar um profissional que seja PCA e PCH ao mesmo tempo, pois possuem os dois equipamentos – e este tipo de profissional é muito raro. Então, se você tiver a possibilidade de obter ambas as carteiras, vá em frente. Lembrando que, para quem já é PCA, são necessárias somente 60h de voo em helicóptero para obter a licença de PCH, além de não ser necessário fazer as provas de Meteorologia e Navegação, e o CCF é o mesmo – sem contar que a experiência em IFR no avião vai ser valiosa na asa rotativa. Vale muito a pena! (Aliás, essa é a melhor dica deste artigo, parabéns a você que teve paciência de ler tudo até o final!).
Alexandre Sales
Redes
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