Cultura de Segurança

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Coluna de Coaching de Formação Aeronáutica – Raul Marinho / Blog Canal Piloto
Tema: A falta da “cultura de segurança” na aviação brasileira

(Obs.: Dada sua importância, o artigo abaixo está sendo publicado
simultaneamente nos blogs Canal Piloto e
Para Ser Piloto.)

Dias atrás, eu publiquei um post traduzindo/resumindo e comentando uma matéria publicada na revista Aviation International News (baseada em pesquisas da FAA-Federal Aviation Administration, a ANAC dos EUA; e do NTSB-National Transportation Safety Board, o equivalente ao CENIPA para eles) sobre os principais problemas de segurança que afetam a aviação geral dos EUA. E estava lá, bem no topo, a “falta de ‘cultura de segurança’ na aviação geral”, uma das piores fraquezas do sistema aeronáutico norte-americano, de acordo com o FAA/NTSB. Bem, mas isso é sobre os EUA; será que no Brasil o problema também existe? (A pergunta é meramente retórica: é óbvio que existe! O que nos interessará explorar neste artigo, na verdade, são as particularidades do problema para a realidade brasileira, especialmente no que se refere à instrução aeronáutica).

Bem… Para começo de conversa, nossa falta de cultura (de uma forma geral) é, atualmente, um – como dizer? – fator de orgulho nacional. O presidente mais popular da história destepaiz (aquele cuja mãe “nasceu analfabeta”) é um militante defensor da causa da anticultura, e o desempenho dos estudantes brasileiros em TODAS as avaliações internacionais de qualidade na educação não deixa dúvida quanto à gravidade do problema. Associado ao desprezo pela educação formal – mesmo porque a qualidade da maioria das escolas/universidades brasileiras é uma lástima –, nossa tolerância aos desvios éticos é outra característica nacional marcante. No país do jeitinho, a burla às regras é motivo de júbilo, não de vergonha. Isso não é diferente na aviação (inclusive na instrução aeronáutica): aqui no Brasil, pega bem você ser meio rebelde quanto à “cultura de segurança”.

Nós temos até uma expressão bem peculiar, muito popular nos aeroclubes/escolas, para dizer quando algum aspecto formal de segurança está sendo desrespeitado: “não pega nada não!” A meteorologia não está favorável ao voo? Ah, mas eu vou voar mesmo assim, “não pega nada não!” A documentação do avião e/ou do piloto não está correta? Ah, mas eu vou voar mesmo assim, “não pega nada não!” A aeronave está apresentando sinais de que uma pane pode acontecer a qualquer momento? Ah, mas eu vou voar mesmo assim, “não pega nada não!” Eu não estudei adequadamente os manuais da aeronave, e não tenho o treinamento adequado para lidar com panes neste avião? Ah, mas eu vou voar mesmo assim, “não pega nada não!” Só que, um dia, “a coisa pega, sim!”, e basta um dia ruim para acontecer um acidente fatal. E é o que tem acontecido ultimamente, com uma frequência espantosa.

No decorrer do mês passado (abril/2012), aconteceram três acidentes fatais relacionados à falta de “cultura de segurança” aeronáutica. Todos muito diferentes entre si, e em nenhum dos casos existe um relatório final do CENIPA que ateste as suas causas, mas pelo menos uma coisa é absolutamente certa: se tivéssemos uma “cultura aeronáutica” robusta neste país, esses acidentes não teriam acontecido. Vamos a eles:

  1. O primeiro grande acidente do mês aconteceu com o T-28 Trojan do empresário e entusiasta da aviação Fernando Botelho, que caiu e explodiu logo após a decolagem da pista de sua fazenda, próxima a São Carlos-SP, matando os dois ocupantes da aeronave (Fernando e outro piloto, que o acompanhava). Botelho era um homem de inúmeras qualidades, mas não estava entre elas o apreço pela segurança de voo (que o digam os pilotos que já trabalharam para ele…). Na verdade, o empresário era famoso justamente por cultivar uma imagem de “aviador arrojado” – tanto é que morreu pilotando um avião militar utilizado na Guerra do Vietnã, de altíssimo desempenho, projetado para operar em porta-aviões, e utilizado basicamente em manobras acrobáticas.

  2. Exatamente uma semana após o acidente com o T-28, um King Air sofre uma pane na decolagem, caindo e explodindo após girar sobre o próprio eixo quando tentava retornar para pouso na pista do aeroporto de Jundiaí-SP, matando o piloto, único ocupante da aeronave. Embora não se saibam as causas do acidente, uma coisa é certa: o piloto não estava habilitado junto à ANAC para poder pilotar o King Air, e estava usando o Cód.ANAC de outra pessoa para poder decolar. E há fortes indícios de que esta “irregularidade burocrática” tenha tido papel importante no acidente, uma vez que o piloto teve que camuflar a emergência para não evidenciar a fraude no uso do código de um terceiro (teria sido esta a razão do piloto não ter recolhido o trem de pouso, por exemplo).

  3. E, uma semana após o acidente em Jundiaí, um avião de instrução do Aeroclube de Itanhaém (um Tupi), com instrutora e aluno a bordo, caiu no litoral de São Paulo, matando ambos. Não se sabe ainda o que aconteceu, mas o fato é que, no dia do acidente, as condições meteorológicas estavam péssimas – para se ter uma ideia, o rio Tietê formou ondas na cidade de São Paulo, devido a rajadas de vento de até 40Kt na superfície! Voltaremos a discutir esse acidente mais adiante.

Não é meu objetivo entrar no mérito das causas desses acidentes, volto a afirmar, e sim comentar o fato de que o desprezo pela “cultura de segurança” permeou a todos eles. E, vejam bem, todos esses acidentes aconteceram nas proximidades da cidade de São Paulo, onde a sofisticação da aviação é a maior do país (e onde a fiscalização da ANAC seria, hipoteticamente, a mais atuante). Imagine o que acontece na chamada “aviação de garimpo”, nas pistas de terra da Amazônia!?

O que eu acho incrível é que nós temos know how para ter uma aviação bastante segura: basta ver o baixíssimo índice de acidentes da aviação comercial. Por que, então, quando passamos da aviação comercial para a geral, estes índices explodem? A Física envolvida no voo de um A320 e de um King Air é a mesma, a meteorologia é a mesma, o espaço aéreo é o mesmo, entretanto a chance de você morrer em um King Air (ou num Seneca, num Cirrus, etc) é muito maior que num A320 (ou num B737, num EMB-190, etc). O que acontece é que a “cultura de segurança” da aviação comercial é completamente diversa da “cultura de segurança” da aviação geral: essa é a grande diferença!

“Ah, mas seria muito caro implantar uma ‘cultura de segurança’ na aviação geral”. Poxa, mas não é justamente a aviação geral a “aviação dos ricos”? Quer dizer que um proprietário de King Air não pode gastar US$20mil/ano para mandar seu comandante fazer simulador nos EUA? Trazer o treinamento em CRM* para a realidade da aviação geral (aeroclubes/escolas inclusive) é economicamente inviável? Como diria o Capitão Nascimento: “tá de sacanagem”, né? Poderíamos discorrer horas sobre este problema aqui, mas este é um blog voltado à formação aeronáutica, então eu gostaria de me concentrar no problema específico do acidente com o avião de instrução, ocorrido no litoral paulista.

(*Obs.: CRM significa Cockpit/Crew/Corporate Resource Management – “Gestão de Recursos da Cabine/Tripulação/Empresa” – e possui seu treinamento no Brasil regulamentado pela IAC 060-1002A. Trata-se de um treinamento bastante extenso e complexo, mas em linhas gerais, trata-se de técnicas para melhorar a segurança aeronáutica baseadas em uma melhor coordenação e participação de todas as pessoas envolvidas com a atividade aérea.)

Vamos entender o que aconteceu naquele acidente com o Tupi do Aeroclube de Itanhaém. De acordo com esta reportagem, que relata a conversa que a instrutora teve com alguém em terra antes de decolar para a última etapa da navegação (Sorocaba-Itanhaém), a INVA estava ciente do mau tempo, mas decidiu prosseguir (“não pega nada, não!”). De acordo com o interlocutor desse derradeiro diálogo, “se o tempo não melhorasse, ela voltava e dormiria aqui na região”. Mas ela não voltou, prosseguiu até o litoral, encontrou condições adversas, e acabou morrendo. Não vou entrar no mérito da atuação da INVA neste caso, mas… A instrutora sai num voo com um aluno de PP (em sua primeira navegação, ainda por cima), e ninguém no aeroclube monitora a missão? Não que haja obrigação legal de o aeroclube fazer isso, mas se houvesse uma “cultura de segurança” forte na instituição, o certo seria alguém do aeroclube ter entrado em contato com a instrutora na escala em Sorocaba, e mandar que ela permanecesse no local até que o tempo melhorasse – ou talvez nem permitisse que ela decolasse de Itanhaém. Era óbvio que o voo seria de risco! Talvez a instrutora não tivesse ciência da gravidade das condições meteorológicas que reinavam naquele dia (ou mesmo não conseguisse avaliar a situação corretamente), mas uma pessoa treinada em terra, na frente de um computador, teria total condição de avistar o perigo e abortar a missão. Ou eu estou falando alguma barbaridade aqui?

Não quero com isso condenar o Aeroclube de Itanhaém, muito menos a instrutora: o que aconteceu neste caso também aconteceria na maior parte dos aeroclubes/escolas do Brasil, com qualquer outro INVA. E é este, justamente, o problema! Salvo as exceções de praxe, o que mais acontece é isso mesmo que foi relatado na reportagem acima: o instrutor sai numa missão por sua exclusiva conta e risco, e ninguém mais está preocupado com seu voo além dele mesmo. Ou, em outras palavras: não existe uma “cultura de segurança” que crie uma segunda barreira para evitar que aconteça um acidente. Se o julgamento do instrutor sobre a segurança do voo falhar por algum motivo, acabou: a missão estará em risco, e ninguém poderá evitar o acidente. Se, por exemplo, a conexão 3G do smartphone do instrutor der pau (e dá o tempo todo), e ele não conseguir pegar o METAR e TAF da localidade de destino, pronto: um acidente começa a ser gestado – iniciar uma cadeia de eventos catastróficos é tão simples quanto isso. Quando, na verdade, deveria haver alguém no aeroclube preocupado com o instrutor em navegação, checando os mapas de satélite e demais informações meteorológicas, e alertando o instrutor em caso de necessidade. A responsabilidade pela segurança da operação não poderia ficar nas mãos de uma única pessoa, por mais capacitada que ela seja.

“Ah, Raul, quer dizer então que agora vai ter que ter ‘babá de instrutor’ em aeroclube? O instrutor já não é um profissional certificado pela ANAC para prover a segurança de um voo de instrução?”. Bem… Em primeiro lugar, não é uma questão de os instrutores terem “babá”. O ponto é que, por mais experientes e proficientes que eles (os instrutores) sejam, eles são humanos, e como tal, falíveis. Um dia, o sujeito pode estar preocupado com a namorada ciumenta, a conta estourada no banco, o carro enguiçado, ou sei lá mais o quê, e não percebe um risco óbvio, que perceberia num dia normal, e por isso sempre deveria haver uma outra pessoa monitorando seus passos, para não deixar que ele cometa um equívoco que poderia se transformar em um acidente (esse, aliás, é o conceito básico do CRM). E, em segundo lugar, vamos ser realistas? Um INVA de 19 anos e 200h de voo (nada contra os mais jovens e/ou menos voados), que é uma realidade nos aeroclubes de hoje, tem mesmo condições de prover total segurança num voo? Vamos continuar nos enganando até quando com isso? “Ah, mas se exigirem INVAs muito experientes, a instrução aeronáutica se inviabiliza!”. Ah, tá… Então, vamos manter a coisa do jeito que está, e se morrer mais gente, fazer o quê, serão “danos colaterais” (não era assim que o Bush falava quando um míssil Tomahawk caía numa escola por engano, e matava centenas de crianças na Guerra do Iraque?).

Encerrando

Eu sei que a maior parte dos leitores do Canal Piloto e do Para Ser Piloto é formada por aspirantes a aviador, estudantes da aviação, ou pilotos em início de carreira. Matheus de Souza Fonseca, o jovem de 19 anos que faleceu no acidente com o Tupi do Aeroclube de Itanhaém estava, portanto, dentro do perfil típico dos leitores daqui. Desta vez, foi o Matheus a vítima, e no próximo acidente, quem será? Eu? Você? Algum amigo nosso? Se nada fizermos quanto à melhoria da segurança de voo no Brasil, num dia será o Matheus, no outro o Raul, depois o Joãozinho, o Zézinho, e assim por diante. É isso o que a gente quer? (Mais uma pergunta retórica, agora para encerrar).

O ponto é que as únicas pessoas que podem mudar isso, implantando uma melhor “cultura de segurança” nos aeroclubes, escolas e empresas do Brasil somos nós! Os pilotos mais experientes não mudarão seu modo de agir, não adianta esperar que eles façam alguma coisa nesse sentido. Aliás, eles (os mais experientes) tentarão evitar que a “cultura se segurança” seja levada a sério, é da natureza humana ser refratário a mudanças – especialmente se quem as estiver liderando forem os mais jovens e/ou menos experientes. Por isso, é importante que você tenha “consciência situacional” (para utilizar outro termo muito comum em CRM) em tudo o que você fizer relacionado à aviação, e se pergunte se aquilo faz sentido mesmo, se existe algum outro modo mais seguro de fazer a mesma coisa. E nunca pense que “não pega nada, não”, isso não existe em aviação! Você pode questionar seu instrutor, o presidente do aeroclube, seu chefe, o Papa, sempre que achar que alguma coisa está errada na operação aeronáutica. E se alguém reclamar, diga que está seguindo as recomendações de CRM para a segurança aérea. (Se a pessoa for do ramo aeronáutico, ela vai respeitar sua posição, pode ter certeza).

Raul Marinho

Alexandre Sales
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