Quando andar de carro é mais seguro que voar de avião

posted in: Artigos, Enderson Rafael | 5

Existe um conhecido ditado que diz que a parte mais perigosa da viagem é o trecho feito de carro entre a sua casa e o aeroporto. Esse ditado é relativamente bastante evocado para demonstrar como a aviação é segura, e sua intenção é, de maneira lúdica, tranquilizar os passageiros mais ansiosos.

Porém, essa é uma meia verdade, e ninguém mais que os pilotos precisam saber e reconhecer isso. E se você dirige seu próprio carro até o aeroporto de onde sai para voar, há ainda mais razões para se debruçar sobre o assunto nos próximos minutos.

Um bom piloto tem tudo para ser um bom motorista: pilotos precisam saber e respeitar muito mais regras que uma pessoa comum, têm noções de física que o ajudam a acelerar e frear apenas quando realmente necessário corroborando para a melhor conservação de energia possível, uma inteligência espacial comumente fora da média que o ajuda a não se perder e saber exatamente quanto falta o tempo todo, além claro de uma compulsão natural pela economia de combustível – que num carro daria num inconveniente e numa multa, mas em um avião pode ser a diferença entre a vida e a morte.

Mas nós não dirigimos – nem pilotamos – sozinhos, e há muita gente aí fora com bem menos compromisso com a segurança que nós, e a ANAC tem praticamente tanta facilidade em encontrar irregularidades quanto a Polícia Rodoviária Federal. Logo, as estatísticas de segurança se aplicam a todos nós.

Como de praxe, nos faltam dados brasileiros confiáveis para ilustrar o que digo, mas estima-se que a aviação geral do Brasil tenha voado 2.200.000 horas em 2007. No mesmo período, nos EUA, foram 23.819.000 horas voadas. Eles tiveram 496 mortes em acidentes neste período, e nós, 71. Ou seja, eles tiveram 10.8 vezes mais horas voadas que nós, e 6.9 vezes mais mortes. Fica claro que a aviação geral deles é mais segura, mesmo com esses dados mais antigos, e não há muita razão pra acharmos que eles ou, principalmente nós, melhoramos muito nesse quesito de lá pra cá.

Na verdade, os números de 2011 de lá são de 6.51 mortes para cada 100.000 horas voadas na aviação leve (“light aircraft”). De acordo com Robert Goyer, colunista da Flying Magazine, dá para convertermos isso em “milhas dirigidas” e chegarmos à conclusão de que, nos EUA, temos 12 mortes para cada 100.000 milhas terrestres voadas na aviação geral americana. Embora tenha uma frota muitas vezes maior que a brasileira, o número de mortes no trânsito americano é menos da metade do nosso. E lá, a correlação entre milhas dirigidas e mortes é de 1.1 fatalidade para cada 100.000 milhas. Mas como assim? Pois é, lembram que eu disse que o ditado era uma “meia verdade”? Pois sim, existe uma aviação que gasta tanto combustível por passageiro/km quanto um carro e é muito mais segura: a aviação comercial. Nela, esta mesma conta dá o assombroso resultado de 0.5 mortes para cada 100.000 milhas terrestres voadas.

Resumindo, com dados dos EUA, voar num Boeing ou Airbus tende a ser 2 vezes mais seguro que andar de carro, e 25 vezes mais seguro que voar de Cessninha no aeroclube. Independente dos desconhecidos números brasileiros para este fim, dá pra imaginar uma correlação parecida por aqui.

Ou seja, se você está indo de carro fazer sua aula prática de piloto, é bom que você saiba que o voo que se seguirá tem 12 vezes mais chance de matá-lo que o caminho até o aeroporto. E isso muda toda a perspectiva, pois o medo é algo saudável, e por mais que os mais jovens em geral tenham uma totalmente equivocada noção de imortalidade, é bom que todos nós, jovens ou não, lembremos o tempo todo que a segurança da aviação depende de nós. Portanto, se você está indo assumir o voo na sua companhia, os parâmetros são mais alentadores. Mas se está indo voar um turbohélice para o seu patrão, dar ou receber instrução num mono de asa alta, ou mesmo passear com a família no seu bimotor leve, tenha em mente que depende totalmente de você, piloto, não ser mais um a contribuir com estatísticas tão sofríveis. Pense em quantos pilotos de linha aérea morreram pelo caminho, antes de voarem um jato, e não queira ser um deles. Na aviação, honramos a memória dos mortos fazendo nossa atividade mais segura a cada dia. E todo, absolutamente todo acidente, é evitável. Nem que seja pela mais difícil decisão que um piloto em comando deve tomar: não decolar, pelo menos enquanto as condições de risco não forem aceitáveis. Pois risco sempre existirá. Que o gerenciemos da forma mais inteligente e cuidadosa possível.