– Vocês não vão acreditar. É uma longa história. Conto depois no hotel. Agora temos que nos mexer para encerrar as operações por aqui. – Resumi.
– Como assim encerrar as operações? – Claudio perguntou preocupado. – E o meu voo noturno? Só falta ele para encerrar a instrução. – Lembrou aflito.
– Vai acontecer hoje meu rapaz. Amanhã você estará formado piloto esportivo de primeira classe. – Anunciei.
– Se sobreviver. – Fabiane completou entre os dentes.
Imediatamente iniciamos o preparo da pista para o voo noturno. Em uma lata de óleo para caminhão, encharcamos estopas e distribuímos em pequenas latas menores em volta do campo. Esta era a parte mais chata do procedimento. Marcar a pista sem iluminação elétrica. Só terminamos de atear fogo nas latinhas quando já estava escuro.
Sentamos lado a lado nos assentos do ultraleve onde comecei a instrução por considerações teóricas.
– Voar a noite não é o problema Claudio. Com os nossos relógios altímetros e algumas referências bem iluminadas no solo, não vamos nos perder. O problema é que estes altímetros não têm a precisão necessária para nos orientar sobre a altura certa de nivelar o avião antes de tocar na pista. A precisão de movimentos do manche para elevar ou abaixar a aeronave, deve ser de centímetros. Se elevar o nariz muito cedo, acontece o que se chama de “estol” que é quando o ar deixa de fluir corretamente pelas asas e caímos bem rápido. Se demorar demais para elevar o nariz, entramos voando em um ângulo muito aberto e batemos forte no chão.
– Mas já sei fazer o “arredondamento” do pouso certo. Faz tempo que meus pousos são de “manteiga”, como diz a Fabi. – Protestou Claudio.
– Isto de dia. À noite, nossos olhos perdem completamente a noção de altura. Sem referência de profundidade que os dois olhos fornecem ao cérebro, é muito difícil saber a distância que estamos do solo. Antigamente, usavam-se duas fontes de luz. Uma na frente e outra atrás e embaixo da fuselagem. Calculando a inclinação das duas lanternas e observando os círculos iluminados que faziam na pista, era possível saber a distância precisa que se estava do solo.
– Mas nós não temos nenhuma fonte de iluminação. – Lembrou meu aluno.
– Não no avião. Mas temos uma fonte de luz em terra que está a uma distância conhecida. Pense um pouco. – Desafiei.
Após pensar um pouco e olhar em volta, chegou à conclusão que eu queria:
– A luz do hangar! – Deduziu Claudio – Evidente! Assim que eu enxergar a lâmpada lá dentro, significa que meus olhos estão a 3 metros do chão. Ou seja, o trem de pouso estará a um metro e meio. Momento perfeito para arredondar o pouso. Genial!! – Vibrou com a constatação.
– Isso mesmo. Não adianta nem olhar para baixo. Basta se aproximar paralelo a porta do hangar e olhar para o lado. Assim que avistar a lâmpada, puxe delicadamente o manche para suavizar o pouso.
– Chegou à hora. Decole rumo norte. Quero que você se acostume com a escuridão. Nivele a 50 metros de altura sobre a praia. Na volta, faça uma passagem baixa de reconhecimento sobre o campo e as condições do vento.
Claudio decolou com a tranquilidade de sempre. Porém assim que saímos do chão ele percebeu o efeito que eu havia lhe explicado. Não sabia a que altura estava. O chão desaparece muito rapidamente. Perde-se aquela sensibilidade que se tem ao usar a visão diurna. Fiz o sinal para ele ficar de olho no altímetro e seguir o brilho das ondas batendo na praia.
Aos poucos ele foi ficando mais á vontade naquela situação tensa. Mas era isso mesmo que eu queria. O máximo de experiências extremas e controladas para meus alunos. A atitude dele era boa. Sempre disposto a ouvir os mais experientes. O conhecimento e habilidade, eu passava para ele. Agora havia chegado o momento da verdade. A ação. Pousar no escuro uma aeronave sem luz alguma.
A primeira passagem foi para ganhar a noção de espaço horizontal. As luzes improvisadas em volta da pista eram suficientes para isso. A segunda era para valer. Tentaria fazer o pouso. Posicionou-se no rumo, reduziu a potência e sentimos a aeronave perder altura. Ele tentou olhar no altímetro, mas eu não deixei. A informação seria incorreta. Neste momento é melhor confiar no instinto. Fiz o sinal de calma que ele entendeu bem e respirou fundo para se concentrar na tarefa.
Fiquei com as mãos preparadas para assumir o controle ao menor sinal de problemas. Pelo meu instinto faltavam uns 5 metros para o chão, mas ainda não havia uma referência confiável. Olhávamos fixamente para a luz que vinha de dentro do hangar esperando o momento de ver a lâmpada pedurada no teto.
Quando finalmente a enxergamos, percebi que tocaríamos fora da pista. O desastre seria inevitável. Assumi rapidamente, acelerei e após tomar velocidade, subi, arremetendo o pouso. Claudio olhou assustado para mim. Não querendo desestimulá-lo, fiz um sinal que estava tudo bem que ele deveria tentar outro pouso. O rapaz engoliu em seco, mas encarou o desafio. Aliás, era seu ponto forte, a coragem de tentar onde já havia falhado outras vezes.
Fez o tráfego novamente, alinhou na rampa de descida baseado apenas no instinto e veio para o pouso. Com o motor quase parado, aproveitando a gravidade e a velocidade do ângulo de descida, concentrou-se na porta do hangar. Quando viu a lâmpada, suavemente puxou o manche e, após um pequeno planeio, as rodas tocaram suavemente o solo.
Sua alegria era imensa. Havia conseguido fazer o que poucos pilotos já haviam feito. Eu por minha vez, estava muito orgulhoso dele e também de mim mesmo, pois havia conseguido criar um substituto a minha altura. Taxiamos até o hangar onde desembarquei sob os aplausos genuínos da Fabi. Me aproximei dele, abracei-o e disse que agora o céu noturno era só dele. Que aproveitasse o voo. Bati em seu capacete e mandei-o decolar sozinho.
Eu e a Fabi ficamos ali lado a lado vendo o ultraleve sumir na escuridão. Só ouvíamos o zumbido circundando a pista. Em alguns momentos, já ouvíamos o motor em baixa rotação se aproximando pelo sul. Pouco antes de tocar o solo conseguimos ver o ultraleve fazer um pouso perfeito. Pulamos de alegria e quando Claudio taxiou até perto do hangar, sem aviso, foi recebido por um balde dágua na cabeça. Uma velha tradição dos pilotos que fazem seu primeiro voo solo.
Nos abraçamos emocionados por mais uma missão cumprida pela equipe de amigos da adrenalina. Companheiros e usuários do produto químico da paixão.