Honra no Céu

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A caça

No dia 20 de dezembro de 1943, a missão do 379º grupo de bombardeiros era atacar a fábrica de caças Fw-190 em Bremen, na Alemanha. O esquadrão estacionado na base aérea da RAF, em Kimbolton, era formado por Fortalezas Voadoras Boeing B-17. Entre elas, uma chamada “Ye Pub Olde” comandada pelo tenente americano Charles “Charlie” Brown, de 21 anos.

A Flak inflingia pesadas perdas e a sigla tornou-se palavra temida por todos aviadores aliados. Flak é a abreviação de Flugzeugabwehrkanone – canhões antiaéreos (Flugzeug-avião, abweher – contra, kanone – canhão). Como era de se esperar, o poder de fogo da artilharia antiaérea alemã, próxima à fábrica, era enorme.

(Imagem: Reprodução artística)

Os caças alemães, mesmo em menor número, tinham grande vantagem sobre os pesados bombardeiros. Atiravam quase que livremente, uma vez que os aviões que ficavam fora da formação cerrada, tinham pouco poder de fogo embarcado. As 11 metralhadoras .50 distribuídas pela fuselagem, não eram suficientes para repelir o rápido ataque dos Messerschmitt Bf-109 e Focke Wulf Fw-190 alemães.

Nesta época, os bombardeios faziam incursões no território inimigo, completamente sós e desprotegidos de escolta. As baixas eram enormes e a estimativa otimista era que apenas dois terços dos aviões que decolassem, voltariam para a base. Apenas em 1944 os bombardeiros aliados puderam ser escoltados durante toda a missão, graças à grande autonomia do novo modelo “D”, do P-51 Mustang.

Após 10 minutos sobre o alvo e voando a 27.000 pés, o avião do tenente Brown recebeu vários impactos diretos da artilharia antiaérea. A explosão no nariz da B-17 feriu gravemente o artilheiro da posição e destruiu o sistema de navegação da aeronave. Outros impactos certeiros afetaram o sistema hidráulico, elétrico e dois dos quatro motores, tornando o número dois totalmente inoperante e o número quatro com apenas 40% da potência. Sem velocidade, a Fortaleza Voadora ficou desgarrada e incapaz de permanecer em formação.

Apenas alguns minutos depois do primeiro impacto, além de Charlie, com um estilhaço no ombro direito, o artilheiro de ré estava morto e todos os outros 8 tripulantes também estavam feridos. Quatro deles gravemente. A fuselagem estava incrivelmente destruída, não só pelos obuses da artilharia como pelas balas de metralhadora de alguns dos 15 caças alemães que faziam a interceptação. O motor número 3 também foi atingido e perdeu 50% de potência. A seção da cauda fora atingida diretamente e o estabilizador de bombordo havia sido arrancado.

(Imagem: Reprodução artística)

A temperatura exterior a aquela altitude era de menos 60 graus centígrados e sem o sistema de suprimento de oxigênio, o piloto perdeu a consciência. Fora de controle, a aeronave iniciou uma descida em direção a morte. A pouco mais de 1.000 pés, Charlie recobrou os sentidos justamente a tempo de conseguir nivelar o voo e perceber o que parecia ser o pior dos cenários. Encontrava-se próximo a uma base de caças inimiga e, logo à frente e acima, um Messerschmitt Bf-109 fazia uma curva fechada para se posicionar para o abate.

Ciente de que sua capacidade de reação era nula, Brown apenas esperou, conformado, a rajada final daquele caça que se aproximava por bombordo. Inesperadamente o Messerschmitt completou a curva, diminuiu a velocidade e emparelhou seu voo ao do bombardeiro. Naquele momento encontravam-se tão próximos que se podia identificar claramente a expressão do rosto de cada tripulante.

O piloto alemão acenou duas vezes tentando persuadir Brown a pousar ali perto e se render. Charlie negou-se e continuou lutando para continuar em frente no rumo que pensava ser o da Inglaterra. Percebendo que o americano não se renderia e claramente estava perdido, balançou as asas e sinalizou para que fosse seguido na curva de 180 graus que os levaria para a costa. A escolta foi feita asa com asa até que chegaram sobre o Mar do Norte, quando então o piloto do caça despediu-se com um respeitoso cumprimento e retonou para sua base.

Desde Bremen, a B-17 voou 300 milhas até pousar em Seething em Norfolk, no campo de pouso do 448º grupo de bombardeiros na Inglaterra.  No debriefing de após voo, Brown informou aos seus superiores sobre o que o piloto alemão havia feito. Foi-lhe dito para não contar isso para o resto da unidade para que não se criasse qualquer sentimento positivo acerca dos pilotos alemães. A obrigação de silêncio sobre a humanidade do inimigo incomodou Charlie por muitos anos.

(Imagem: Reprodução)

O Caçador

Após haver interceptado o grupo de bombardeiros americanos, Franz Stigler de 26 anos, piloto da Luftwaffe, pousou para reabastecer e voltar ao combate. Veterano com 22 inimigos abatidos, Stigler já havia percebido a B-17 isolada como um alvo fácil. A vigésima terceira vitória lhe garantiria mais uma honrosa condecoração: a Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro.

Completamente armado, decolou em direção ao pássaro ferido. Ao se aproximar para os disparos percebeu a tragédia iminente a bordo do bombardeiro. Pelas entranhas rasgadas da aeronave, era possível ver os tripulantes feridos e o estrago já imposto pela Flak e seus companheiros de caça. Jamais havia visto uma aeronave tão avariada e ainda voando.

Franz emparelhou seu Messerschmitt Me-109 ao lado da Fortaleza Voadora e tentou em vão persuadir o piloto a se render, ou pelo menos a voar em direção da Suécia. O americano estava ferido e desorientado. Naquelas condições, sua morte e da tripulação era certa.

Lembrando de um de seus instrutores de combate, tenente Gustav Roedel, que lhes havia ensinado sobre a desonra de atirar em alguém no paraquedas, Franz foi tomado por compaixão semelhante. Os tripulantes daquele bombardeiro estavam tão indefesos quanto um homem pendurado em seu paraquedas. No lugar de derrubá-los, decidiu escoltar a aeronave de volta para o caminho de casa.

Ao voltar para base, declarou ter abatido o inimigo sobre o mar e nunca mais tocou no assunto.

O Encontro

Em 1987, mais de 40 anos depois do incidente, o já então Tenente-Coronel aposentado Charles Brown, ainda assombrado pelos acontecimentos daquele dia, iniciou a busca pelo homem que havia salvado sua vida e a de seus homens. Começou a publicar seguidamente em uma revista especializada para veteranos de guerra da Luftwaffe a seguinte frase: “Procuro piloto alemão que salvou minha vida em 20 de dezembro de 1943”.

Contando com a ajuda de seu antigo chefe e amigo, o general Adolf Galland, Stigler, recebeu o anúncio em Vancouver, no Canadá, para onde havia se mudado em 1953. Primeiro trocando cartas e depois telefonemas com o alemão, Charlie confirmou ser ele o piloto que procurava.

Franz e Charlie (da esquerda para a direita)
(Imagem: Reprodução)

O encontro dos dois pilotos aconteceu em 1990 e foi emocionante para ambos. Brown afirmou ter a sensação de reencontrar um irmão após 40 anos sem notícias. Entre as recordações, Franz Stigler, um ás com 28 vitórias, comentou do receio que teve de que alguém descobrisse que havia auxiliado um inimigo e ser acusado de traição.

No dia marcado para a primeira reunião, Charlie preparou uma brincadeira com Stigler. Assim que o alemão chegou ao hotel, em Seattle, para o encontro, um mensageiro correu em sua direção e perguntou:

– O Senhor não é aquele famoso piloto alemão da Segunda Guerra? Poderia me dar um autógrafo? – Pediu o rapaz, apresentando uma gravura que Charlie havia mandado fazer.

Franz não deixou por menos. Mais tarde, quando uma repórter perguntou por que Stigler não havia atirado, ele respondeu sorrindo:

– Porque eu não sabia que ele era assim.

Daquele dia em diante, os dois homens se visitavam com frequência e participavam juntos de eventos militares nos EUA e Canadá. Tornaram-se grandes amigos e juntos continuaram protagonistas de uma história de honra e coragem que começou no céu de 1943 e terminou na terra em 2008. Stigler faleceu em 22 de março com 92 anos e oito meses depois Brown falecia aos 87 anos. 

Renato Cobel
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