O caso do Abel

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Coluna de Coaching de Formação Aeronáutica – Raul Marinho / Blog Canal Piloto
Tema da semana: O caso do Abel

 Caros (futuros) aviadores do Canal Piloto, Oscar Lima Alpha!

Nesta semana, nós vamos explorar o caso de um jovem de 17 anos chamado Abel, que pretende se tornar aviador, mas que está completamente perdido sobre como fazer isso na prática. A situação dele é muito diferente da apresentada no outro estudo de caso que fizemos aqui, quando exploramos o caso do Marcelo algum tempo atrás, mas acredito que muito parecida com a de vários outros jovens Brasil a fora. Daí meu interesse em responder ao e-mail do Abel (abaixo reproduzido) publicamente, pois acredito que minha resposta poderá servir para bastante gente – principalmente, para quem não tem recursos para custear a formação aeronáutica. Então, vamos ao caso.

O e-mail do Abel:

Raul,

Meu nome é Abel, tenho 17 anos (vou fazer 18 no mês que vem) e estou cheio de dúvidas. Meu sonho é ser piloto, gosto muito de avião, e eu pretendo esse ano fazer o curso de graduação em Aviação Civil na faculdade Anhembi Morumbi em São Paulo, pelo programa de financiamento do Governo (FIES), pois não tenho condições nem de pagar o curso e nem as horas de voo em um aeroclube. Estou com muito medo, pois é uma loucura o que estou fazendo, já que eu não tenho nenhum familiar e não conheço ninguém que esteja no ramo da aviação para me orientar e me ajudar. Sem contar que eu estou com medo de fazer a faculdade e depois não conseguir nenhum emprego para pagar o FIES e minhas horas de vôo.

Bom, vou para as perguntas:
  1. O inglês oferecido pelo curso de Aviação Civil (Ciências Aeronáuticas) já é o suficiente para exercer qualquer função no ramo da aviação? Pois eu estava vendo que as empresas aéreas pedem no mínimo um inglês intermediário e eu só sei o básico do básico.

  2. Na faculdade tem um simulador 737 se eu não me engano homologado pela ANAC. Se eu fizer 150h de instrução neste simulador já é o suficiente para as empresas me contratarem como co-piloto?

  3. Com o diploma da faculdade, em que área da aviação eu poderei exercer? É muito difícil arrumar um emprego somente com esse curso?

  4. Você acha que eu devo fazer essa loucura toda para tentar realizar meu sonho que venho há muito tempo sonhando? Será que com essa formação eu posso realizar meu sonho?
Desde já, peço desculpas e agradeço pela sua atenção, pois eu estou agoniado sem saber o que fazer para realizar meu SONHO de estar um dia voando.

A resposta

Então, Abel… Começando pelo final: por que pedir desculpas? O que foi que você fez de errado? Sonhar não é crime. E a sua “agonia” é compreensível, você não imagina o que existe de gente na sua idade agoniado, principalmente porque não sabe o que quer fazer da vida. Mas, pelo menos isso parece que está resolvido na sua cabeça: você sabe que quer ser piloto. Está perdido sobre como chegar lá, é verdade, mas pelo menos sabe aonde quer chegar, o que já é um bom começo.
 
Percebo que você tem uma grande preocupação com os recursos necessários à sua formação. Você não é o único, amigão: quase todo mundo que está tentando ser piloto tem esse mesmo problema, em maior ou menor grau. Mas vou te dizer uma coisa: a maioria dos pilotos profissionais que eu conheço vem da classe baixa ou média-baixa; ao contrário do que muita gente supõe, os pilotos – os que vivem da profissão, não estou me referindo a quem pilota por hobby – não vêm de berços de ouro. E essa gente toda deu um jeito de se formar, então fique sabendo que é possível ser piloto mesmo tendo origem humilde. Leia o livro “O sonho brasileiro” (existe uma cópia PDF disponível aqui, sobre a biografia do Cmte Rolim, que foi dono da TAM, para você ver como é possível que um sujeito pobre se torne piloto de sucesso. Pode ser difícil (e vai ser, pode apostar) e demorado (idem), mas você vai conseguir.
 
O grande trunfo que você tem nas mãos é o tempo: você é muito jovem, o que significa que não é preciso ter pressa para se formar. Mas esse tempo todo não valerá de nada se você não tiver disciplina, ou se você se perder no meio do caminho. E, do jeito que as informações chegaram até você, pelo que pude observar, a tendência é que você se perca. Então, vou começar a minha orientação respondendo às suas quatro perguntas:
  1. Eu não conheço como é o curso de inglês oferecido pelas faculdades de Ciências Aeronáuticas e similares, mas é certo que ele não será suficiente para quem entrar na faculdade num patamar muito básico na língua inglesa, como parece ser o seu caso. E, de fato, as companhias aéreas estão pedindo proficiência em inglês nos processos de seleção ultimamente, sendo que a tendência para o futuro é que o domínio desta língua seja cada vez mais importante. Mesma coisa para o curso superior, totalmente dispensável há até poucos anos, mas que ganha importância dia a dia. Só que é preciso entender direito o que isso significa, senão você vai queimar todas as suas fichas aprendendo inglês e fazendo faculdade, e não vai adiantar nada. Preste muita atenção no que eu vou te falar:
UM PILOTO COM AS CARTEIRAS DE PILOTO, MAS SEM FACULDADE E SEM INGLÊS, AINDA É UM PILOTO; MAS UM PILOTO COM INGLÊS E COM FACULDADE, PORÉM SEM AS CARTEIRAS, NÃO É NADA.
 
O que eu quero dizer com isso é que, numa escala de prioridades, a faculdade e o inglês têm que vir sempre atrás das carteiras. Num cenário ideal, com recursos suficientes para pagar a formação aeronáutica completa, lógico que é interessante ter as carteiras, a faculdade, e o domínio do inglês. Mas no mundo real, em que é preciso optar entre ter as carteiras OU inglês/faculdade, não tenha dúvidas: tire as carteiras, e depois pense no resto.
  1. Simulador nenhum substitui as carteiras, meu jovem: sem elas, você não sai do chão. Para uma companhia aérea te contratar como co-piloto, você tem que ter as carteiras (PC, MLTE e IFR), e a experiência de umas 500h de vôo no mínimo, na maioria dos casos. O inglês também é importante, mas menos que as carteiras e a experiência. Depois, dependendo da companhia, pode ser que o tal simulador de B737 seja relevante, mas isso é o objetivo mais fácil de atingir na sua formação aeronáutica, para conseguir o currículo mínimo para entrar numa companhia aérea. Resumindo: esqueça dessa história de simulador de Boeing neste momento.
     
  2. Para um piloto, o diploma de CA-Ciências Aeronáuticas (ou AC-Aviação Civil, como é o caso da Anhembi Morumbi), é um “diferencial”. O que nisso significa? Se, num processo seletivo, a única vaga disponível estiver sendo disputada pelo Zezinho e pelo Joãozinho, ambos com as mesmas carteiras, a mesma experiência, a mesma proficiência em inglês, mas o Zezinho possui o diploma de CA e o Joãozinho não, o Zezinho pode passar na frente do Joãozinho, e ficar com a vaga. Percebeu para que serve o diploma de CA/AC para um piloto? “Ah, mas uma pessoa formada em CA/AC pode exercer outras atividades na aviação que não a de piloto”. Sim, pode! Ela pode, por exemplo, trabalhar na área administrativa de uma empresa aérea, só que aí ela vai concorrer com uma pessoa formada em Administração de Empresas, que pode trabalhar tanto numa companhia aérea, quanto numa indústria, num banco, etc. – ao passo que o formado em CA/AC não pode trabalhar fora do escopo da aviação. O formado em CA/AC teria, em tese, uma maior facilidade para trabalhar como aeroportuário. É uma vantagem? Bem… Desvantagem é que não é, mas será que vale a pena fazer a faculdade só por isso? Eu não acredito que valha, mas a decisão é de cada um. Para saber mais sobre o assunto faculdade, eu recomendo a leitura deste artigo aqui.
     
  3. ”Essa loucura toda” – financiar a faculdade de AC pelo FIES, e depois tentar trabalhar só com isso, sem ter como pagar as horas de vôo para tirar as carteiras de piloto – é exatamente isso: loucura. Não vai te levar a nada, só vai te frustrar. Porém, existem outras opções de “loucuras”, que de insanas não têm nada, mas que poderão te levar ao objetivo que você quer atingir. É o que vamos discutir em seguida.
Estratégias para se tornar piloto sendo pobre

“Se você não pode contar com a ajuda material de terceiros, nem possui reservas financeiras próprias, você não tem condições de ser piloto civil”: esta é a afirmação que você mais vai ouvir na sua batalha para conseguir ser piloto. Mas ela é verdadeira? Bem… Até é, só que você pode mudar a realidade, e é aí que está a graça da vida. Pois se isso fosse uma verdade inexorável e permanente, como é que a maior parte dos pilotos profissionais em atividade atualmente (que eu já te disse que não nasceu em berços de ouro) conseguiu se formar? Simples: adquirindo recursos com outras atividades para, depois, poder se tornar aviador. É aí que a sua juventude conta a favor: mesmo que leve 10 anos para você juntar o dinheiro necessário para iniciar sua formação aeronáutica (e vai levar bem menos), você ainda poderá começar a voar aos 27 anos, o que te possibilitará ingressar no mercado de trabalho perto dos 30. Isso significa que você poderá pilotar 30/40 anos na sua vida. Está bom isso para você?
 
Leia a biografia do Cmte Rolim, e veja como ele conseguiu pagar sua formação: trabalhando em atividades que nada têm a ver com aviação – inclusive dirigindo um táxi na zona de Catanduva. O dono deste blog, o Sales, juntou (e está juntando) o dinheiro dele editando vídeos e vendendo camisetas e publicidade no blog. O Athos, meu colega de colunismo aqui, vai prestar concurso para o Banco do Brasil. Eu tive um colega no curso de PC que trabalhou anos como motoboy em Londres para juntar o dinheiro de sua formação. Enfim, cada um arruma um jeito para juntar o dinheiro para as horas de vôo. Qual o melhor no seu caso? Só você pode responder.
 
O que você não pode ter, meu caro, é preconceito (muito menos preguiça ou falta de determinação, mas isso eu nem vou discutir). Por exemplo: hoje em dia, a construção civil está bombando, e pedreiro nunca ganhou tão bem. Por que não procurar emprego numa obra? Ser pedreiro é uma profissão tão digna quanto qualquer outra, e hoje em dia é acessível para quem não tem experiência. Com disciplina, você consegue economizar uns R$1mil/mês mole, mole. Isso significa que, em pouco mais de 3 anos, você junta todo o dinheiro necessário para realizar a formação básica que eu sugeri neste artigo aqui. No fim das contas, você se torna piloto com 22/23 anos. Para chegar ao seu objetivo, meu amigo, vale tudo, menos agir sem ética ou fora da lei – e trabalhar na construção civil não é nem antiético nem ilegal, pelo que eu saiba.
 
Uma outra opção bastante interessante é ingressar na aviação em posições que não a de piloto. Pode-se, por exemplo, entrar numa companhia aérea como comissário, DOV-Despachante Operacional de Voo, ou MMA-Mecânico de Manutenção Aeronáutica, todas atividades regulamentadas pela ANAC, que exigem cursos e certificados, mas requerem um investimento muito menor que o necessário para ser piloto. Ou então tentar uma colocação como aeroviário, que é o sujeito que trabalha para a companhia aérea em solo, na venda de passagens, no check-in, etc. Em qualquer um destes casos, você já estaria no mundo da aviação, o que facilita conseguir vantagens no futuro – por exemplo: participar de seleções internas para pilotos. Ingressar na área administrativa de empresas do segmento aeronáutico, nem que seja como office boy, poderá ajudar também.
 
Há, ainda, a possibilidade de você se tornar piloto militar, tanto da Aeronáutica, quanto da Marinha ou do Exército (neste último caso, somente piloto de helicópteros). Entretanto, o processo de formação aeronáutica militar é para poucos, e exige muitos sacrifícios e nenhuma garantia de que, no final, você consiga atingir o objetivo de se tornar aviador. A única idéia que não pode passar pela sua cabeça é a de querer fazer da academia militar um aeroclube grátis, e usar a estrutura militar para se tornar aviador civil. Além de ser uma atitude antiética, é um dos caminhos mais longos, difíceis, e arriscados (no sentido de haver muitas chances de você acabar desempenhando atividades diferentes da de aviador) que podem existir.
 
Como você deve ter percebido, para ser aviador sem ter alguém bancando sua formação e sem dispor de uma poupança razoável, requer uma estratégia indireta. Não tente iniciar a sua formação aeronáutica diretamente, sem planejamento – como era a sua idéia inicial, de fazer a faculdade de CA/AC e depois ver no que dá –, que você vai quebrar a cara. Encontre uma maneira de ganhar dinheiro, leve uma vida simples que te possibilite formar um pé de meia, e só depois parta para a formação aeronáutica propriamente dita. Enquanto isso não acontece, ir estudando um pouco de inglês, treinando no simulador em casa, e lendo livros sobre aviação são atividades paralelas que só irão ajudar, e manterão sua chama aeronáutica acesa. Mas nunca se distancie do seu objetivo, que deve ser o de juntar dinheiro para pagar suas horas de voo.
 
É isso, meu caro Abel. Espero que, agora, você esteja um pouco menos perdido do que estava antes de me enviar o seu e-mail. Embora possa parecer que o seu sonho tenha ficado mais distante, saiba que é exatamente o contrário. Se você seguisse com a sua estratégia inicial, seria muito difícil conseguir chegar ao seu objetivo. Agora, você sabe o que tem que fazer para chegar lá, então na verdade o seu sonho ficou muito mais próximo de se realizar. Tenha persistência, disciplina, e foco, que você chega lá. Boa sorte, e depois conta para a gente como sua formação está progredindo.
Alexandre Sales
Redes
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