O trânsito estava infernal. O caminho até o município vizinho estava interrompido em diversos pontos por contas das obras eleitoreiras. Até nisso os políticos conseguem atrapalhar. Minha ansiedade era enorme. O tempo não passava. Os carros não passavam. A vontade de vê-la novamente… não passava.
Quando deixamos de voar, eu nem sei bem. Provavelmente a distância e a imaturidade tenham permitido que um piloto e a aeronave que mais amava ficarem separados por tanto tempo. Motivo real não houve. Simplesmente foram aumentando os períodos sem missões, apesar de que, quando elas aconteciam, eram intensas.
Era a paixão que eu continuei a imaginar como ideal. Éramos um só: homem e máquina, macho e fêmea… Admirava suas formas perfeitas e sua agilidade durante o voo. Nada a superava. Asa alta, branca e a cauda mais perfeita que alguém poderia projetar. Os salpicados de vermelho na carenagem e as formas douradas sobre o cockpit refletiam o sol que parecia ser só dela.
Em voo, era simplesmente perfeita! Potência no motor e leveza de comandos. Dócil e rápida na reação às manobras. Enfrentava qualquer turbulência sem perder a coordenação ou atitude. O barulho do motor era uma música sem igual. Os manetes cabiam em minhas mãos, como se tivessem sido moldados para elas.
Nosso primeiro encontro foi em um show aéreo sobre a praia. Embora desejada por todos os pilotos do local, eu fui o escolhido para fazer o translado. Desde a primeira vista, tive a impressão que ela também havia me escolhido. Ao entrar na cabine, percebi imediatamente que seria a aeronave que eu jamais esqueceria. Não precisei de check list algum para decolagem, sabia de cor cada movimento e cada resposta dela aos meus comandos. Soubemos naquele instante que havíamos sido feitos um para o outro.
Lembrava perfeitamente de cada sensação e visual que tive a bordo dos nossos voos. Cada pouso em Curitiba ou São Paulo era motivo de intensa emoção. Acrobacias de perder o fôlego, decolagens curtas, aproximações perigosas, e o mais importante: éramos absolutamente seguros que nós dois saberíamos nos safar de qualquer pane.
Mas éramos jovens. Queríamos voar outras aeronaves e outros pilotos precisavam descobrir o que é voar em uma máquina tão perfeita. Voamos muito e aprendemos separados. Fizemos voos maravilhosos, mas também sofremos panes violentas. Nos afastamos e muito tempo se passou.
Na escuta sem pretensões, soube da passagem da Whisky-Alpha-Charlie por SBCT. Embora meus cabelos brancos tivessem me tornado mais cuidadoso, a lembrança dos nossos voos me fez atropelar a cautela. Sem pensar em mais nada, fui atrás da intuição.
Após tantos anos, me perguntava o que havia acontecido ao seu modo delicioso de voar depois dos maltratos da vida. Não ousei fazer suposições. Aceitaria qualquer surpresa, mesmo que desagradável. O passado havia sido muito importante para que as boas lembranças fossem substituídas.
Frustrado, fiquei olhando para o céu esperando ver aquela silhueta no horizonte. O controle havia me informado equivocadamente que o ETA era incerto. Meia hora de angústia total até ouvir a transmissão que a aeronave já estava em solo e taxiando em minha direção.
Longos minutos se passaram até que a vi novamente. Tão linda quanto antes! Apressei o passo para tocá-la. Anos pareceram minutos. A dúvida se eu seria capaz de pilotá-la novamente, desapareceu completamente. O tempo sumiu. Nos reencontramos e iríamos nos (re)conhecer novamente, cortando um caminho sofrido.
Acariciei o painel e instrumentos, movido por uma triste felicidade. A desejava mais que tudo, mas sabia que a missão havia sido longa e voar imediatamente não faria bem a ela. Esperei tantos anos… poderia esperar mais algum tempo. O impensável é que ela era minha novamente e decidimos participar de novas rotas, e estávamos conscientes que por mais perigosas que elas fossem, voarmos juntos faria valer a pena qualquer turbulência ou perigo.
Cheios de paixão madura e elegância (que só o tempo dá àqueles que sabem viver), o velho piloto e sua bela aeronave voarão juntos, como jamais fizeram antes.
Enfim a torre anuncia – “Whisky-Alpha-Charlie, permissão para decolar.” –
“Bom voo comandante.” – complementa o gentil controlador.
Fim
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