Conto – Vida por Instrumentos

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Assim como na aviação, a nossa vida tem centenas de instrumentos para nos orientar. Medimos e consultamos cada um deles continuamente. Checamos nosso colesterol, nossa conta bancária, nossa popularidade, nosso peso, enfim… Marido, mulher e crianças, todos dentro da mesma aeronave chamada vida e eu no comando.

  Em uma aeronave razoável, temos instrumentos para tudo e redundantes ainda por cima. Marcador de combustível, altímetro, rádio, temperatura dos motores, sirenes de alerta, e mais uma série de medidores que nos dão alguma segurança durante o voo.

  Com o tempo, nos tornamos dependentes de consultar e monitorar cada um destes instrumentos. A maior parte do tempo de voo é usada nestas atividades frenéticas de controle.

  Toca o despertador e começa a rotina para o nosso voo por instrumentos. Aliás, o despertador é o pior deles. A sensação é que estamos em um planador girando dentro de uma térmica dos sonhos quando repentinamente caímos como uma pedra. O gostoso silêncio do vento e o conforto do assento são substituídos pela campainha infernal que nos derruba para fora do sono.

  Em seguida a higiene. Check visual onde ficamos cuidando do aparelho, olhando tudo sem prestar atenção em nada. Afinal, não acordamos ainda. A coisa só começa a ficar séria quando nos lembramos de drenar o tanque. Retirar aquela água é muito importante. Eu que sou diabético tenho um trabalho a mais: checar se o combustível não está muito doce. Ainda bem que tenho o equipamento certo para isto. Mas enfim… Continuamos o check antes da decolagem.

  Completo o tanque de combustível e óleo e dou partida para esquentar o motor. Enquanto isso refaço mentalmente o plano de voo do dia. Olho o relógio e percebo que estou com a partida atrasada. Minha copiloto começa a ficar impaciente, agressiva e atrapalhada.

– Calma. – Digo eu. – A pista vai continuar lá.

– É … mas temos que fazer uma perna até a escola das crianças, outra no supermercado e na mamãe.

– Mas querida, na sua mãe não vai dar. A pista é ruim, o controlador não gosta de mim, o combustível é de baixa qualidade além de outros problemas. Prefiro uma pane e ficar no meio do trajeto. – Brinquei.

  Checo novamente os instrumentos para decolagem. Chave, documentos, rádio, bateria, agasalho, papelada e iniciamos o táxi.

  Opa! Esquecemos de trancar o hangar. Nova instrução para a copila já vermelha de raiva. Os pequenos passageiros estão contentes pois logo serão PP e voarão solo. Só precisam estudar bastante para passar em todas as provas e aproveitar os céus com “total” liberdade.

  Enfim partida autorizada e embora o trânsito até cabeceira esteja congestionado, a esta hora sabemos que não tem volta. Nova checagem de instrumentos, troco informações com a torre, com a copila, com os passageiros e iniciamos os procedimentos para a decolagem.

  Velocidade, vento, pressão, nova conferência nos mostradores e a corrida até desgrudar da pista. Por um momento percebemos que estamos voando livres. Infelizmente lembramos que temos um tráfego correto a executar e uma rota obrigatória a seguir. Em nome da segurança, checamos todos os instrumentos novamente. Altura, regulagens, flaps, trem em cima e tudo o mais que precisamos para voar.

  Olho no variômetro para manter a melhor razão de subida. O drama de uma possível falta de combustível está sempre me lembrando deste cuidado. Mesmo nivelado, o voo deve ser em velocidade cruzeiro. Sempre em nome da economia ou segurança. Radares, ADF, TCAS, PSA, HDL e mais tantas outras siglas sempre nos lembrando de ficar preocupados.

  A copila e os passageiros não param de falar nem um segundo. Minha irritação é grande e me perco na navegação. Cadê a marcação que deveria estar aqui na vertical? Droga. Tenho que solicitar vetoração e me achar novamente. O controlador me orienta de má vontade ou eu estou tão irritado que entendo assim. Não importa, tenho a missão para cumprir e estou no comando da aeronave. Por isso sou o comandante. Responsável por todos e pela aeronave. Respiro fundo e continuo os procedimentos. Até penso em largar tudo, mas lembro que estou a 5.100 pés com mais três a bordo.

  Mais uma boa porção do tempo desperdiçado consertando os erros que eu mesmo cometi. Para isso devo dobrar a atenção nos instrumentos e me antecipar aos problemas que podem surgir. Para piorar percebo que o METAR estava errado ou eu não li direito. Só sei que esperava um voo tranquilo e o que encontro é um céu adverso e turbulento.

  Quando enfim entro em rota novamente e penso que posso descansar um pouco, as sirenes de alerta começam a gritar. A pressão de óleo de um motor cai bruscamente, a perda de potência é evidente e a altitude também. A aeronave ainda está pesada e voar mono não vai resolver. O destino é a terra. Minha função agora é permanecer sobre ela o máximo de tempo possível. Escolho a pista de pouso alternativa e torço para conseguir chegar até lá.

  Checagem de instrumentos, comunicado de pane, instruções do controlador (calmo porque não é ele que está na aeronave), e o chão crescendo a nossa frente. A copila entra em pânico e congela nos comandos. Meu serviço é dobrado. Peço que os passageiros apertem o cinto, pois a aterrissagem não vai ser macia como esperávamos. Surpreendentemente, os alunos se comportam muito bem. Talvez não entendam bem o que pode acontecer ou talvez sejam mais inteligentes que eu. O fato é que fazem todo o procedimento de emergência para a pane e principalmente tentam não atrapalhar o piloto.

  A boa atitude dos passageiros me dá novo ânimo para caprichar no pouso forçado. A pequena pista disponível já se encontra a vista. A cabeceira cresce muito alto no horizonte. Estou baixo e não sei se conseguirei chegar.

  Os amigos me incentivam pelo rádio, mas não podem voar por mim. Outros conhecidos se apressam a dar palpites mirabolantes e inexequíveis. A aeronave e seus ocupantes são minha responsabilidade e apenas minhas decisões vão definir nosso futuro.

  Decido não abaixar o trem para não perder velocidade. Neste momento é tudo que eu quero: mais tempo para chegar a um lugar mais seguro. Sem trem de pouso e sem flaps, a aeronave continua atraída pela gravidade em direção a terra com mais velocidade e menos sustentação. Parece que nessa configuração, farei um pouso de barriga, mas permanecerei sobre o maldito chão que parece me querer tanto embaixo dele.

  Passo a poucos metros de altura da cabeceira voando rápido e baixo. Agora chegou a hora da verdade. Preciso mostrar para que serviram tantas horas de voo. Mesmo com as chances contrárias, mantenho a calma, sigo os procedimentos duramente aprendidos e delicadamente escorrego pela pista em um acidente semicontrolado.

  Acordo sobre a maca enquanto as crianças seguem segurando minha mão. Todos estão ilesos, embora visivelmente preocupados e declaram seu amor por mim.

– Pai, você é o melhor piloto do mundo. Te amamos mais que tudo.

Isto me emociona.

  Dentro da ambulância a caminho do hospital, me dou conta que tenho olhado em instrumentos demais e estou me esquecendo de voar. 

Alexandre Sales
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