Ganhando os Céus – Prontos para o Push e Acionamento

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O embarque já havia começado quando o despachante técnico trouxe os papéis. Navegação, meteorologia, NOTAMs e flight status. O comandante devolve a ele a via assinada da Fuel Order, contendo o total de abastecimento, que já havia sido iniciado enquanto você estava fazendo a externa. Você confere a navegação, se certifica de que o número do voo está correto, assim como o prefixo da aeronave e o nome do comandante. Em seguida, se todos os flight status – boletins internos que chamam a atenção dos pilotos para procedimentos especiais que estejam em vigor, tanto relativos aos aeródromos como à aeronave – vieram com os papéis. Ainda na folha de navegação, já checa a altitude do aeródromo de destino e o nível de voo previsto, e os coloca no painel de pressurização. Enquanto isso o comandante já checa a ISA deviation da rota – o que ajudará o computador a determinar o melhor nível de voo – na folha de navegação e insere na primeira página do FMC – Flight Management Computer – além de também inserir na mesma página o cost index, índice escolhido pela empresa que prioriza ou velocidade ou economia para guiar os cálculos do FMC – o vento em cruzeiro e o combustível reserva, que coincide com o mínimo combustível sobre o destino para alternar-se para o alternado mais distante. Ao mesmo tempo, você pega o manual de análise de pista, com o qual você fará os cálculos de performance para as condições meteorológicas e o peso da aeronave para aquela etapa.

De posse do bloco com o formulário de decolagem – take off data card – você insere no FMC a temperatura atual. O computador do avião calcula então o máximo de potência que os motores têm disponível naquela temperatura. No manual de análises – que contém análises específicas para todas as pistas onde a companhia opera – você vê, na linha de temperatura correspondente, qual o máximo de peso para aquela temperatura, vento e pressão atmosférica. Esse será seu limitante por performance, seguido da razão que o limita. Também neste manual, você pega a altitude de aceleração e a de redução de potência. A primeira você insere nos mínimos do PFD, e a segunda, na segunda página de take off do FMC. A altitude de aceleração será a altitude em que você começará a recolher os flaps e tomar as atitudes seguintes, caso haja uma perda de motor na decolagem, por exemplo. A altitude de redução de potência é a altitude em que o avião sairá da potência de decolagem para a de subida. Para completar, da navegação você pega o limitante de peso estrutural para aquele voo, hoje sendo pouco mais de 70 toneladas – em pistas mais curtas ou em temperaturas mais altas, pode acontecer de o limitante de performance ser menor que o estrutural. O peso atual de decolagem tem sempre que ser naturalmente menor que o menor dos limitantes. Com o áudio aberto no interfone, você ouve:

– Cabine, na escuta da manutenção? Confere o combustível?

Você checa se o total de quilos mostrado no painel e na navegação batem, e agradece ao técnico de manutenção que acompanhava o abastecimento de doze toneladas de Jet A1, o combustível que os jatos usam. Ato contínuo, seleciona o PA e faz o anúncio para a cabine de passageiros:

– Tripulação, término do abastecimento – os comissários devem estar especialmente atentos enquanto a aeronave é abastecida, por razões óbvias.

Não há muito mais que você possa fazer com relação à performance enquanto não chegarem os dados de peso atual da aeronave, que só virão quando o check-in for fechado e o despachante operacional de voo, numa das principais bases da companhia, enviar os dados que incluem o peso dos passageiros e carga definitivos. Por isso o check-in fecha meia hora antes da decolagem: para que esses cálculos fundamentais possam ser feitos a tempo.

No entanto, mesmo enquanto esses dados não chegam, há muito o que se adiantar. Faltam vinte minutos para a decolagem. Você checa a rota inserida pelo comandante no FMC, se está em acordo com a do plano de voo que veio na navegação. Pela pista que está operando e pela rota, já dá para deduzir, na maioria das vezes, a saída – SID – que será utilizada e, para adiantar, você insere também a chegada no destino, e se a distância da rota bate com a distância mostrada nos papéis de navegação. Faltam quinze minutos para a decolagem, já dá para pedir a autorização do plano para o controle de tráfego aéreo. Na maioria dos aeroportos só dá para fazê-lo pelo rádio, mas nos terminais maiores, é possível fazê-lo pelo ACARS – aircraft communication addressing and report system – um tipo de data link acessível pelo MCDU, o teclado e tela por onde acessamos o FMC. Numa página específica do ACARS, inserimos o número do voo, o tipo da aeronave, a origem, o destino, a informação ATIS que temos e o box de parada em que está o avião. Enviamos o pedido, e quase instantaneamente, uma campainha toca na cabine, avisando que a autorização, em formato de texto, chegou. Nela, vem a rota do plano, o nível de voo, o procedimento de saída por instrumentos, o código transponder que utilizaremos e a frequência do controle de tráfego após a decolagem.

Enquanto vocês acabam de copiar a autorização e conferir se bate com tudo inserido no FMC e no MCP – mode control panel – até agora, outra campainha toca. Também pelo ACARS, a companhia acaba de enviar a prévia da loadsheet, ou seja, os dados de carregamento do avião. Dentre os dados estão o actual zero fuel weight – peso atual zero combustível – o take off weight – peso atual de decolagem – e o CG, ou seja, o cálculo do centro de gravidade da aeronave para a distribuição de passageiros e carga para aquele voo específico. Com esses dados, você consegue terminar os cálculos de decolagem.

Primeiro, você vai conferir se está abaixo dos limitantes. Com 67 toneladas, está mais de três toneladas abaixo do estrutural e quase vinte abaixo do limitante de performance. E aqui acontece a mágica da economia. Como o Boeing 737 tem muito mais potência disponível do que o que é comumente necessário, você usará dois artifícios do fabricante para economizar combustível, poluentes, ruído e poupar o próprio motor de milhões de dólares. Primeiro o de-rate: embora cada motor do modelo CFM56-7B1 esteja ajustado para produzir até 27 mil libras de empuxo – o suficiente para levantar na vertical quase uma dúzia de carros populares – você baixará o rating do motor para 26 mil libras no FMC. Na prática, é como se no seu carro houvesse um botão capaz de passá-lo de 1.8 para 1.6, por exemplo. Na verdade, o próprio FMC faz isso sozinho, pois a companhia já inseriu na base de dados do computador de voo os aeroportos onde ela opera com quais ratings, sendo o ajuste de 27 mil libras só utilizado em aeroportos com pistas mais restritivas, como Congonhas e Santos Dumont, por exemplo.

A primeira economia já está feita. A segunda será ainda mais significativa e interessante, e chama-se ATM: assumed temperature method. Com 26 graus Celsius, você pode decolar com 86 mil quilos de peso. Mas hoje você está com apenas 67 mil. Então, você busca nas temperaturas da tabela de análise de pista, em qual temperatura você poderia decolar com 67 toneladas de máximo. Digamos que com 56 graus, você poderia decolar com 66.700kg. Já com 54 graus, 67.900kg. É essa temperatura que você vai usar. Você a coloca no FMC, e ele imediatamente ajusta a potência para um parâmetro mais baixo. Se antes, para decolar com 86 mil quilos e 26 graus, você usaria 99.8% de N1 – rotações em porcentagem dos compressores de baixa do motor, a medida equivalente dos RPMs dos motores a pistão para um jato – agora, com 67 mil quilos e 54 graus, usará 92.3% de N1. Todos estes cálculos contemplam e existem apenas para garantir a segurança da decolagem com apenas um motor funcionando. Ou seja, mesmo com toda essa redução, os mínimos de desempenho legais são cumpridos com folga mesmo em caso de falha de um dos motores após a V1, velocidade de decisão – evento raríssimo mas periodicamente treinado no simulador. Com dois motores, continuamos a ter muita potência de sobra.

Você mostra os cálculos ao comandante, que confere e concorda com a temperatura, peso e velocidades que você escolheu. Já tendo completado o take off data card com os dados que faltavam de peso, temperatura assumida, potência, rating, e finalmente, CG, é possível saber o ajuste do estabilizador horizontal da aeronave. Você então ajusta-o para o peso e centro de gravidade calculados pelo despachante. Durante o voo, ele se ajustará sozinho, mas para a decolagem é preciso inserir esse ajuste manualmente.

Com a saída que o controle deu pelo ACARS, você busca nas cartas, e confere se o que está inserido no FMC bate com as restrições, proas e demais dados do procedimento. A SID – ou standart instrument departure – é uma espécie de avenida que leva à estrada, ou neste caso, à aerovia. E a de hoje é das mais exigentes do país, a PCX1A. Com gradiente de 7,3% até o nível de voo 210, requer que a aeronave suba o equivalente à montanha mais alta dos Andes percorrendo uma distância semelhante à que separa São Paulo e Campinas. Ela é feita desta maneira pois a STAR – procedimento padrão de chegada por instrumentos – que liga as aerovias procedentes do nordeste brasileiro ao Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro passa abaixo desta saída. Para completar, montanhas de mais de dois mil metros de altura nas serras de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo fazem com que ganhar altura rapidamente neste procedimento seja ainda mais importante. Não são todas as aeronaves que conseguem cumprir tais exigências, mas checando uma tabela plastificada sobre o painel, que traz vários limitantes de performance retirados do manual da aeronave, no item “all engines average climb” – subida média com todos os motores, você nota que o Boeing 737-800 cumpre o gradiente exigido mesmo com o peso de sessenta e sete toneladas de hoje. Por pouco mas cumpre. Se estivesse mais pesado não cumpriria, e seria necessário pedir outro procedimento ao controle de tráfego aéreo. Numa eventual falha de motor, no entanto, é necessário um procedimento de contingência, que já está previsto e o qual você insere no FMC.

Com todos os dados para a decolagem, você ajusta no MCP os cursos, proas, altitudes e velocidades. No painel de rádios de navegação, coloca a frequência do VOR à frente da pista 10, na saída, justamente Porto das Caixas, e deixa de back up a frequência do ILS da pista 15, pista em uso para pousos no momento, exatamente para se vocês precisarem voltar. O comandante levanta o seletor do flight director da direita, e depois o da esquerda. A luz master verde acende do lado direito do painel, indicando que o piloto automático responderá ao Primary Flight Display do seu lado: nesta etapa, será você que estará como pilot flying – ou seja, voando o avião, enquanto ele estará como pilot monitoring, auxiliando você.

– Eu faço a volta, tudo bem? – diz o comandante. Você concorda, satisfeito com a ideia, e sugere:

– Briefing?

– “Bora” – responde ele com um sinal positivo com a cabeça se ajeitando no assento, enquanto você reúne todos os papéis e dados que precisará para rever os procedimentos que farão.

– Bom, NOTAMs… Taxiways India, Kilo e Lima 3 fechadas, mas não vai afetar a gente porque não vamos passar lá perto. A aeronave está “OK”. Take of Data card: vamos fazer o voo sete dois quatro, decolando do Galeão, pista uno zero, seca – você vai conferindo o que preencheu no formulário de decolagem junto com o que está inserido no FMC – a informação do ATIS é a Mike, cento e trinta com cinco, CAVOK, mil e vinte um no altímetro. É um 800 Short Field, zero fuel cinquenta e cinco duzentos e trinta, está lá, com o take off fuel de onze mil e oitocentos, actual de meia sete e trinta, tá lá. Limitado pelo ramp weight, setenta quinhentos e trinta três, estamos dois mil quilos acima do máximo de pouso, de sessenta e cinco, trezentos e dezessete. Rating do motor – você vai para a página de N1 do FMC – 26K, máxima de N1 de 99,8%, reduzida a 54 graus, 92,3%, está lá, com climb em máximo pois não há restrições de subida – você passa para a página de Take Off do FMC – Flaps 5, CG de 25.5, Stab Trim… 5,10… tá lá. V1, 139, VR, 139 e V2, 142 – você confere no FMC e no MCP – Acceleration 830 e thrust reduction, 800, tá lá. Ok, a gente está no vinte e dois, taxia via pátio uno, Echo Echo, Mike ou November, e depois Oscar ou Quebec e ponto de espera da uno zero, que tem quatro mil metros. Fomos autorizados com transponder quatro dois dois cinco, saída RNAV Porto uno alpha, transição IMBAP, inserida e conferida. Decola, course 099 até Porto das Caixas, 114.6 – você confere o MCP e o painel de rádios, pois embora seja um procedimento que usa o GPS e o inercial, a rádio navegação sempre está em stand by como backup. Curva à esquerda, 014 até ISRIN, atento à restrição de FL210 ou acima que a gente cumpre, depois IMBAP e de lá para a aerovia Upper Zulu quatro dois. MSA – minimum safe altitude – no setor, FL095.

Além de mais algum detalhe da carta, o briefing se encerra com a leitura dos itens pertinentes do airport briefing, uma carta elaborada pela empresa para itens específicos de segurança e política da mesma com relação a cada aeroporto onde ela opera, e que no caso da pista 10 do Tom Jobim inclui, como já dito, um procedimento de contingência para perda de motor, com espera sobre o litoral, devido à grande altura da serra ao norte do aeroporto. Por fim, o comandante, responsável pela rejeição da decolagem, se necessária, faz o briefing de RTO – reject take off.

– Até 80 nós, a gente aborta por qualquer razão. Após 80 nós, somente fogo, engine failure, predictive windshear ou unable to fly. O callout é “reject”, eu vou assumir freios, speedbrakes e reversos, e a gente vai parar o avião na pista e avaliar. Eu falo com os comissários e passageiros, você fala com a torre – completa o comandante, deixando claro que algumas decisões numa emergência são mais mecânicas que racionais: devido à urgência, elas são exaustivamente treinadas em simulador para que os pilotos não precisem relativizar quando as enfrentem, fazendo com que as decisões seja antecipadas de forma segura friamente no briefing, e não tomadas no calor dos acontecimentos.

Assim que vocês acabam o briefing, o despachante chega com a loadsheet, documento que contém, entre outros, dados do carregamento do avião, os pesos e ajuste de trim. Vocês conferem se bate com que já haviam recebido pelo ACARS, e o comandante assina uma via e fica com outra. Em seguida, o chefe de cabine chega com o POB – people on board.

– Terminou o embarque, um sete oito. Pode fechar?

Vocês conferem se o total bate com a load, e o comandante autoriza o fechamento de portas. Faltam três minutos para o horário previsto, estamos fechando antes do horário, como sempre que possível. A pontualidade é uma das metas mais importantes depois de segurança e economia de combustível para uma tripulação. Tudo pronto para o início do voo, e nunca é demais lembrar, tripulante só recebe quando o motor está girando. Então vamos lá!

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