Ganhando os Céus – Alinha e Decola

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Tão logo a chefe de cabine fecha a porta, você inicia o seu scan flow. Assim como antes da externa você havia feito os preliminary procedures – e depois de sentar no seu assento, os preflight procedures – agora é a vez dos before start procedures. Ou seja, você irá configurar os diversos sistemas da aeronave para o acionamento dos motores. No after overhead panel, o painel superior mais próximo da porta, você desliga o interfone. Há diversas entradas para os fones da manutenção, espalhadas pela parte externa da aeronave. Você consegue falar da cabine de comando com os técnicos da manutenção que estão na asa abastecendo, por exemplo, por essa rede. Durante o voo, no entanto, essas entradas podem acumular água, então você as isola com esse botão.

Em seguida, você vai ao painel de combustível e liga as bombas elétricas. Em geral, deixamos sempre uma do tanque principal esquerdo ligada em solo para “auxiliar” a APU – que recebe combustível deste tanque. Para o acionamento dos motores, todas as principais serão ligadas, e dependendo da quantidade no tanque central, as bombas dele também – há duas para cada tanque, e hoje ligaremos todas as seis, pois temos cerca de 4 toneladas em cada um deles. Seguindo o mantra “de cima pra baixo, da esquerda pra direita”, seus dedos passeiam pelo painel superior, e seus olhos identificam sem dificuldade o que está diferente do que deveria. Passando pelo aviso de atar cintos, você o coloca em ON – estava em OFF desde o corte dos motores na etapa anterior. Em seguida, no painel hidráulico, coloca as duas bombas elétricas em ON – cada motor tem uma bomba elétrica e uma bomba mecânica, sendo que as mecânicas estão sempre ligadas na operação normal – mas só funcionam com o motor girando, naturalmente. Isso pressuriza o sistema hidráulico com 3 mil libras por polegada.

Mal seus dedos pararam de tatear o teto, assim que a última porta de carga é fechada – geralmente o porão dianteiro, onde se levam animais vivos quando há – e as luzes indicativas de saídas abertas no painel superior se apagam, o comandante pede o checklist específico. Alguns itens você lê e responde, outros você lê e ambos respondem, e outros você lê e ele responde. O primeiro fala da trava da porta blindada; o segundo, da quantidade de combustível e se as bombas estão ligadas; o terceiro, se as janelas da cabine de comando estão trancadas; o quarto, se a velocidade de segurança – V2 – a proa da pista e a próxima altitude para a qual a aeronave está autorizada estão inseridas corretamente no MCP; o quarto, se o freio automático está na posição de RTO, ou seja, Reject Take Off, para o caso de uma rejeição de decolagem; o quinto item trata das velocidades – V1, VR e V2 – inseridas no FMC lá no cálculo de performance; o sexto, se toda a inserção de dados no FMC está completa; o sétimo, se os compensadores de leme e ailerons estão zerados na posição neutra; o oitavo, se o briefing foi realizado. E então, há uma linha que os separa do último item.

– Pode pedir – diz o comandante para você.

– “Solo Galeão, voo sete dois quatro, na vinte e dois, pronto para o pushback e acionamento”.

No rádio, o controlador autoriza e pede para que você chame para o táxi. Ao mesmo tempo, o comandante chama o técnico de manutenção, que já estava ao lado do nariz do avião aguardando com o fone ligado aos conectores, escondidos por uma portinhola no lado direito da fuselagem. O técnico avisa ao comandante que o check de segurança externo já foi efetuado, e que está tudo pronto, com o trator devidamente conectado e os calços – peças de borracha que seguram os pneus do avião, para que ele não se movimente no pátio quando está com o freio de estacionamento solto – fora. Tecnicamente, boa parte dos aviões a jato poderia até dar ré com força própria, mas além de barulhento e custoso, isso aumentaria o risco de ingestão pelos motores de objetos soltos no pátio, além do fato óbvio de que, sem espelhos retrovisores, os pilotos dependem totalmente da visão do mecânico para saberem o que há atrás da aeronave. Logo, faz todo o sentido usar um trator para levar a aeronave até a posição de início do táxi.

Depois desta breve conversa, o comandante então autoriza o mecânico a iniciar o tratoramento da aeronave. Vira para você e pede para ligar a luz anticolisão. Também conhecida como beacon, é a famosa luz vermelha piscante acima e abaixo da fuselagem, que ligada, indica que uma aeronave está em movimento ou prestes a se movimentar. Você lê então o último item do checklist: “anticollision light, ON, before start checklist completed below the line”. Com a mão esquerda, seleciona brevemente o microfone do PA e anuncia aos comissários:

“Tripulação, preparar para a partida”.

Agora uma sequência longa de procedimentos bem ensaiados acontecerá enquanto os comissários fazem a demonstração de segurança. Na cabine de passageiros, o ar condicionado para brevemente. Quando autorizado o acionamento, você passou as packs – sistemas de ar condicionado do avião – para OFF: todo o ar sob pressão que vem da APU precisa agora ser direcionado para os motores, de forma a girar os compressores de alta, conhecidos como N2.

Em coordenação com o mecânico que acompanha a aeronave, o comandante dispara o cronômetro do lado dele e diz “Start engine number 2”. Você confirma verbalmente e coloca a start switch do motor direito na posição GROUND. Aos poucos os compressores vão ganhando velocidade, e quando a rotação chega a 25% de N2, o comandante abre a respectiva engine start lever, que libera combustível para o motor. Você dispara o cronômetro do seu lado. Em dez segundos você precisa ter indicação de EGT – temperatura dos gases de exaustão do motor – senão o acionamento deve ser interrompido. Aliás, há diversos fatores em que um acionamento deve ser interrompido, incluindo problemas comuns até a um Cessna monomotor a pistão, como uma wet start – caso citado com relação aos dez segundos – ou uma hot start – indicada por um disparo na EGT, só para exemplificar duas situações em que se interromperia o acionamento. À medida que o acionamento acontece, há aumento do fluxo de combustível, rotação dos compressores de baixa – N1, e a pressão e temperatura do óleo também sobem.

Quando a rotação de N2 atinge 56%, a válvula que direciona ar da APU para o motor para iniciar a partida se fecha. A start switch volta de GROUND para OFF sozinha, e a luz indicativa da válvula no painel de motores se apaga. Você comunica ao comandante “starter cut out”, e assim que os valores se estabilizam, ele pede “engine start number 1”. Para diminuir o tempo sem ar condicionado – foram cerca de trinta segundos até aqui – você faz um procedimento chamado “isolated pack operation”: você fecha a isolation valve através do switch dela, e religa a pack direita. Agora, a pack direita está sendo alimentada pelo motor direito, que acabou de ser acionado, e a pack esquerda, em OFF, deixa o ar comprimido da APU livre para acionar o motor 1, esquerdo. Há outras combinações possíveis, mas não vamos nos aprofundar nisso agora para não complicar ainda mais. O fato é que o ciclo é repetido no motor 1, e aviões mais modernos têm acionamentos mais simples e automatizados, mas o Boeing 737 Next Generation, apesar de ser muito atual em boa parte de seu projeto, conserva, por questão de custos de homologação, alguns sistemas quase idênticos à época em que foi lançado em sua primeira versão, na década de 1960. Não à toa, seu painel superior tem todo um ar de “Apollo XI” a olhares mais cuidadosos.

Quando os dois motores estão acionados e estabilizados, você então efetua os “before taxi procedures”. Antes toda a eletricidade do avião era fornecida pela APU, agora você passa os geradores dos motores para o barramento. Também no painel superior, você liga as probe heats – sistema de aquecimento das sondas pitot de temperatura – e reconfigura o painel pneumático. As packs vão ambas para auto, a isolation switch valve também. Você tira a bleed – sangria de ar – da APU e confirma que as dos motores estão ligadas, suprindo o avião com ar condicionado e pressurizado – há outras configurações além dessa, uma vez que as bleeds dos motores roubam potência dos mesmos, e em dias mais quentes com a aeronave mais pesada, até 2 toneladas de carga podem ser conseguidas numa decolagem “bleeds off”. Mas não é o comum, uma vez que, como vimos, geralmente o 737 tem potência de sobra.

Antes de deixar o painel superior, você desliga a APU e coloca as start swiches em continuous: nessa configuração, também usada em pousos e em meio à chuva forte, a ignição é mantida acesa permanentemente, evitando um apagamento repentino dos motores num momento especialmente crítico. Descendo a mão pelo painel de controle das telas, você aperta o Master Call, para ver se algum item anormal aparece. Em seguida, checando os parâmetros dos motores e confirmando que estão normais e estabilizados, você desliga em comum acordo com o comandante a tela de baixo, onde aparecem parâmetros secundários – e que se acenderá sozinha se algum deles sair da normalidade, chamando a atenção dos pilotos. Concomitante a tudo isso, o técnico de manutenção já deixou o avião na posição para início do taxi e pede para que o comandante acione o freio de estacionamento. Assim que ele o faz, o trator que fez o pushback é desconectado do avião, e o comandante lhe pede para colocar os flaps de decolagem. Você confirma verbalmente e seleciona Flaps 5. O técnico de manutenção confirma que os slats – superfícies supersustentadoras na frente das asas – estão se movendo e o comandante o libera: “À direita com pinos”, e em seguida lhe pede “Before taxi checklist”.

Enquanto o técnico de manutenção retira os pinos que despressurizam o hidráulico do trem de nariz, deixando-o livre para o trator fazer curvas com ele, e desconecta o seu fone de ouvido da portinhola abaixo da janela do copiloto, você lê o checklist. O primeiro item fala dos geradores elétricos, o segundo das probe heats, o terceiro das engine start switches, o quarto do sistema de alerta de recall do Master Caution, até chegar em flight controls, no qual o comandante movimenta o manche e os pedais em todos os seus eixos até o final, para checar se estão livres e funcionando perfeitamente – de fora percebem-se todas as superfícies de controle movendo-se. E por último, o ground equipment, ou seja, os pinos, que agora retirados permitem que o comandante volte a controlar a direção do trem do nariz, através de uma espécie de volante chamado steering wheel. O técnico de manutenção, agora a alguns metros da aeronave, volta-se para a cabine e mostra os pinos com faixas vermelhas onde se lê “remove before flight” para os pilotos, que acenam agradecendo. Findado o checklist, o copiloto pede:

– “Solo Galeão, voo sete dois quatro, uno sete oito a bordo, quatro e trinta de autonomia, alterna São Gonçalo, pronto para o táxi”.

– “Sete dois quatro, táxi via echo echo, november e oscar, no ponto de espera da uno zero monitora a torre, uno uno oito decimal dois. Bom voo”.

– “Echo echo, november e oscar, no ponto de espera da uno zero, dezoito dois, sete dois quatro, boa”.

Você pega o take off data card e checa mais uma vez os flaps, a redução de potência e o ajuste do estabilizador, e anuncia ao comandante:

– Direita livre.

Ele confirma o lado dele e pede para você ligar a taxi light. Enquanto vocês atravessam o pátio atentos à fonia de solo e às outras aeronaves, ele pede:

– Before take off checklist.

A Boeing padronizou para que haja poucos itens aqui, e são apenas dois. Agora o checklist não é mais o cartão impresso: como o avião está em movimento, o checklist que passa a ser usado é o do manche.

– Flaps…

– Five, green.

– Stabilizer trim…

– Cinco ponto dez. – Before take off checklist completed – você confirma, após ambos confirmarem que os itens estão como previsto.

Nos poucos minutos em que vocês percorrem a cerca de 40km/h o trecho entre o pátio e a pista de decolagem, a atenção é toda no controle de solo. Mas hoje, como não há aviões na frente do seu, assim que você se aproxima da cabeceira e passa para a frequência da torre, ela já o chama e pergunta se está pronto. Você, que ouvira o “ok” dos comissários através de uma chamada padrão pouco antes, confirma, e a torre os autoriza a alinhar e decolar. O voo vai finalmente começar. Todos prontos?

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