Ganhando os céus, muito antes de sair do chão

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Você acaba de descer do táxi para mais um dia de trabalho. Vestindo a calça do uniforme e a camisa, quase nada além das alças vazias sobre os ombros e sua briefcase com uma etiqueta onde se lê “crew” denunciam que você não é apenas mais um passageiro. A medida se faz necessária diante da violência urbana que infelizmente assola nosso país: não é prudente exibir fora do aeroporto toda a farda que identifica sua profissão. Mas nada que alguns minutos divididos entre o nó da gravata, a asinha e as berimbelas com duas faixas douradas de cada lado não resolvam. Falta ainda meia hora para a apresentação – uma hora e meia para a decolagem, portanto – quando você entra no despacho operacional, numa sala escondida atrás dos balcões de check-in da sua companhia. Alguns apertos de mão depois, você já reencontrou colegas de outros voos e cumprimentou a todos os presentes. Uns de reserva, outros esperando o horário da próxima programação.

Você vai até um dos computadores e entra no sistema da empresa com seu login e senha. Checa os emails, há um boletim sobre um novo procedimento. Entra no sistema da escala de voos e faz check-in para a sua programação. O prefixo da aeronave, o nome dos tripulantes e até a previsão de passageiros aparece na tela. Você confirma e vai até o balcão: “Bom dia, tudo bem? O Maceió já está aí?” O controlador, que cuida do trânsito de tripulantes e aeronaves olha sua planilha e responde: “Voo sete dois quatro… Vai ser o Tango Mike, pousou já… vai parar no 22, portão 1”. Você agradece enquanto ele estica a mão e lhe entrega um papel com o nome dos seus colegas e o código ANAC de cada um. Ainda é cedo, e só você está no D.O. O bom de chegar cedo é que você pode fazer tudo com calma. Você pega a pasta de NOTAMs – Notice to Air Men – e anota as principais alterações dos aeródromos de partida, destino e alternados. Uma taxiway fechada aqui, um ILS fora ali. Nada muito diferente do usual, com exceção de Salvador, que está operando com apenas metade da pista.

Enquanto na televisão um programa matinal de saúde suscita discussões acaloradas entre três comissárias e uma copiloto de reserva, começam a chegar seus colegas. Você conhece a chefe de cabine de um voo anterior, e o comandante também. Todos se cumprimentam. “Bom dia, comandante, faço parte da sua tripulação”. Um dos comissários os vê e pergunta: “Bom dia, vocês estão no Maceió? Comissário fulano, faço parte”. E assim por diante, todos apresentados, você comenta com o comandante: “A aeronave está aí, Tango Mike, no 22”. Ele agradece e chama todos para o briefing. Num primeiro contato entre tripulantes que talvez nunca tenham voado juntos antes, alguns aspectos de segurança são revistos com os comissários, comenta-se de novos procedimentos, e em poucos minutos estão todos já a par do tom que o voo terá. Com suas malas de rodinhas, despedem-se dos que ficam no D.O. e seguem para a sala de embarque.

No caminho até o raio X, alguma conversa mais informal sobre quem fez o quê na folga, ou alguma notícia de jornal. O silêncio é quebrado pela busca de um assunto de interesse comum, e a escala é frequentemente um deles. Conforme se aproximam do portão, os seis são observados pelos olhares atentos dos passageiros que já esperam o embarque. Faltam agora 40 minutos para a decolagem, e a ideia é manter o avião no horário. O funcionário de terra os cumprimenta e se dirige à comissária mais antiga. “Chefe, temos cento e setenta previstos”. Ela agradece a informação e responde: “Nós vamos checar lá as emergências, e aí liberamos”. O agente de aeroporto concorda e diz que vai descer o finger em seguida.

Nisso você e o comandante já estão na passarela que leva à porta do avião. As cento e quarenta aeronaves da companhia são todas bem parecidas, todas relativamente novas e bem mantidas. Tudo é rotina. Um técnico da manutenção está à bordo quando vocês entram. “Bom dia, comandante. A gente substituiu uma garrafa de oxigênio terapêutico que foi usada na última etapa, estou acabando de reportar aqui no livro. Fora isso, tudo certo com a astronave”. Você coloca sua briefcase num dos gavetões e se dirige à cabine de comando.

Seguindo os preliminary procedures estabelecidos pelo fabricante e pela empresa, você checa os manuais do lado do seu assento, e ainda de pé, os equipamentos de emergência na cabine de comando, incluindo capuz anti-fumaça, extintor de incêndio e cordas de escape rápido. Em seguida, meticulosa mas agilmente, confere se todos os circuit breakers no painel atrás do assento da direita e do assento da esquerda estão em seus lugares. No caminho, pisa na portinhola de extensão manual do trem de pouso para certificar-se de que está bem fechada. Por último, o after overhead panel. Checa as luzes apagadas de todos os itens, a catraca de overspeed e o stick shaker de stall, e avisa ao comandante. “Já liguei o inercial, vou lá fazer a externa”. O comandante – em pé na galley dianteira conferindo o relatório técnico da aeronave, onde são reportadas eventuais panes e itens em aberto de manutenção – agradece, enquanto você pega um colete laranja, que o permite circular no pátio, e sai.

Enquanto os comissários checam os equipamentos de emergência sob sua responsabilidade e o comandante volta para a cabine para fazer a sua parte dos procedimentos preliminares, você está do lado de fora da aeronave. Com seus protetores auriculares bem colocados para evitar a exposição ao barulho, você começa pelos tubos de pitot, alpha vanes e demais sondas próximas ao nariz do avião. Todas precisam estar desobstruídas e intactas. Você checa o trem de pouso dianteiro, o estado dos pneus, do amortecedor, das sapatas que freiam a roda quando o trem recolhe. Seguindo pela fuselagem, confere outros itens, como as tomadas de ar estáticas, a entrada de ar para as packs de ar-condicionado, se todas as portas de acesso ao motor estão bem fechadas, se não há danos às pás do fan. Segue a inspeção, procurando algo faltando ou diferente do esperado, como o vazamento de algum tipo de fluido, vestígios do choque com um pássaro ou danos ao amortecedor da cauda, evidenciando um tail strike recente. Questão mais de tradição do que de necessidade, uma vez que este check também é feito pela equipe de manutenção após cada pouso, a externa é um momento único para o piloto. Ali, ele relembra o check pré-voo que fazia nos primeiros monomotores que voou na sua formação inicial, e talvez pela única vez no dia todo, se dá conta do tamanho da aeronave que voa hoje, dezenas de vezes maior e cem vezes mais pesada.

Poucos minutos depois você está de volta à cabine, o embarque já começou. “Tudo ok lá fora”, você diz enquanto senta no assento da direita pela primeira vez no dia. O comandante já inseriu a posição GPS nos computadores da aeronave, terminando de alinhar o sistema inercial de navegação, que graças à velocidade de rotação da Terra nas latitudes onde está o Brasil, leva cerca de sete minutos para descobrir onde está. Para adiantar, ele também já colocou a rota provável que vocês farão hoje, uma vez que todas as rotas que a companhia opera já estão na memória do computador a bordo. Você começa então a sua parte nos preflight procedures, significativamente mais extensos que o do comandante. Começando pela configuração do overhead panel, sempre de cima para baixo, da esquerda para a direita. Seus olhos treinados já identificam prontamente qualquer botão fora do lugar, qualquer luz que não deveria estar acesa. No Boeing 737, quase todos os sistemas estão no painel do teto da cabine, e você vai checando e conferindo os controles de voo, elétrico, hidráulico, pneumático e outros sistemas secundários enquanto suas mãos passeiam por ele. Por fim, você passa pelos botões de luzes de pouso, traz o seletor de ignição para a posição direita e desliga as luzes de navegação que checou na externa. Tudo tem porquê: no primeiro voo do dia, usa-se os ignitores direitos para ligar os motores pois, diferente dos esquerdos, eles são alimentados por uma barra de emergência de corrente alternada que é suprida diretamente pela barra da bateria – de corrente contínua – através do inversor. Ou seja, a alimentação de vários sistemas vitais que funcionariam mesmo que se perdessem todos os geradores já é testada imediatamente ao ligar-se o avião pela primeira vez.

Terminado o overhead, você liga o Electronic Flight Bag, espécie de tablet que contém cartas de voo por instrumentos e manuais diversos, checa a sua máscara de oxigênio, o relógio e o cronômetro, as luzes de disengage do piloto automático, a pressão do acumulador do freio, e as telas do Navigation Display (ND) e Primary Flight Display (PFD), se respondem aos botões do painel de controle correspondente e se não têm nenhuma indicação que não deveria estar ali. Em seguida, trem embaixo com três luzes verdes, botões de seleção de bugs em automático, e autobrake em RTO – modo de frenagem automática para rejeição de decolagem – e zera o contador de combustível. Na tela secundária dos motores, confere, como já havia feito o comandante, a quantidade de óleo e de fluido hidráulico, se estão dentro dos mínimos operacionais. Em seguida, pulando o pedestal de manetes, flaps e speedbrakes, faz os testes de overheat e fogo dos motores, checando alarmes e luzes correspondentes. Você testa também se as espoletas dos extintores que protegem os motores estão intactas, além do sistema de proteção de fogo dos porões de carga. Em seguida, vem o teste de radar. Um arco multicolorido aparece nos NDs, e várias mensagens sintéticas do sistema de alerta da aeronave são ouvidas em alto e bom tom. Por último, o teste do transponder, em que o sistema TCAS – que protege contra colisões no ar com outras aeronaves – emite alarmes aurais e visuais nos PFDs.

Passando pelo painel de rádio você coloca no VHF 2 a frequência do ATIS, pega um bloco de dados de decolagem e começa a anotar. Tão logo o broadcast de meteorologia do aeroporto dá o ajuste de altímetro, você o insere na sua tela e comunica ao comandante. Ele insere do lado dele e não perde tempo ao reparar que você terminou sua parte, pedindo o preflight checklist. Tão logo vocês o terminam, o despachante técnico chega com os papéis da documentação do voo. Faltam vinte e cinco minutos para a decolagem, agora vai começar o trabalho pesado.

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